quinta-feira, 15 de maio de 2014

História em continuação - episódio 14


Quando vinha da escola pelo atalho do costume, um caminho que cortava pelo meio de um terreno meio selvagem que no inverno ficava empapado de lama, o Pedro deu com um pedregulho que não lhe era familiar naquele sítio. Das tantas e tantas vezes que por ali tinha passado já conhecia todas as pedras do caminho, ao ponto de quase as tratar pelo nome.  Com algum esforço, revirou-o e deu com uma data de maços de notas de 500 euros. Nunca tinha visto sequer uma nota de quinhentos, quanto mais uma quantidade destas. De quem seria aquele dinheiro? Quem o teria ali deixado? Quanto é que estaria ali no total? Uma fortuna, certamente.
Olhou para um lado e outro para ver se não vinha ninguém e se não estava a ser observado. Agachou-se e colocou a sua mochila ao lado dos maços. Começou então a empurrá-los para o seu interior.
Depois de tudo muito bem arrumado, o Pedro seguiu pelo seu caminho habitual, em direção a casa. Com os fones nos ouvidos, tentava o seu melhor para evitar pensar na pesada quantidade de dinheiro que guardava consigo dentro da mochila.
Mas era tão difícil… No meio de um turbilhão de pensamentos, entendeu que estava mais perto ainda do que pensava de chegar ao seu destino. E no fim, de tão distraído que ia, a pensar em não pensar, quase foi atropelado por um carro que passava na rua. A passadeira estava claramente à sua frente, mas ia tão distraído que até se esqueceu de ver se vinha algum carro para poder no fim atravessar a rua. O susto, pelo menos, pareceu trazê-lo de volta à realidade. Talvez isso tivesse acontecido devido à buzinadela estridente que ouviu, ou talvez pelo olhar fixo do condutor que não saía de cima dele, mesmo depois de Pedro ter atravessado a passadeira e ficar mais e mais perto de casa.- Mas que mal disposto… - murmurou o rapaz.
Apesar do susto, o Pedro continuou absorvido nos seus pensamentos. Que atitude iria ter quando chegasse a casa? Contava aos pais? Guardava o dinheiro num lugar seguro ou entregava-o simplesmente à polícia? Tantas questões e nenhuma resposta.
Com estas dúvidas na sua cabeça, o rapaz relembrou o olhar fixo do condutor, não imaginando sequer que este o continuava a perseguir. Ao chegar a casa e estando sozinho, foi a correr para o quarto, fechando a porta. Sentou-se na cama, abriu a mochila e retirou o dinheiro de dentro dela, arregalando os olhos:- Onde irei guardar este dinheiro todo? Não me recordo de ter apanhado tanto. Fixando o olhar no monte de dinheiro, decidiu ir buscar uma folha e uma caneta, para fazer uma lista das ideias que tinha, mas eram tantas que não sabia por onde começar.
Sentou-se em frente à secretária e rapidamente começou a passar para o papel todas as ideias que lhe surgiam:
• “Fazer uma viagem pelo mundo;”
• “Ajudar a minha família;”
• “Ter uma grande casa...”
Estava de tal forma contente que até parecia uma criança dentro de uma loja de doces.
A excitação era tanta, devido à possibilidade de puder vir a concretizar todos os seus sonhos, que até se esqueceu que ainda tinha que resolver um problema: onde iria esconder as notas?
De repente veio-lhe à memória a imagem do condutor que quase o tinha atropelado. Sentiu um arrepio. Algo lhe dizia que aquele homem não era boa pessoa.
Pedro pensou, pensou, voltou a pensar, e não lhe ocorria nenhuma ideia de onde guardar o dinheiro. Olhou para um lado e para o outro, e de repente fez-se um "clique" na cabeça dele. Deitou um olhar fixo ao urso de peluche e teve uma ideia brilhante:
- Ainda bem que a avó me ensinou a coser.
Rapidamente descoseu o peluche e substituiu o algodão pelas notas. Coseu o urso e pensou que assim ninguém iria saber de nada. 
À hora do jantar, quando já estavam todos sentados à mesa, a mãe perguntou-lhe:
- Depois podes levar-me aqueles bolinhos ao novo vizinho?
- Estás sempre a dar coisas aos outros, mãe. Já viste que ninguém te dá nada? - disse ele.
A mãe, estupefacta com a resposta do filho, disse logo:
- Eu não faço isto para me darem algo em troca, Pedro! E fico muito triste que penses assim, porque não foi essa a educação que te dei.~
Quando acabou de comer, Pedro foi a casa do novo vizinho. Tocou à campainha e, para seu espanto, quem abriu a porta foi o condutor que quase o tinha atropelado.
O homem reconheceu-o mas nada disse, e Pedro, nervoso, ia deixando cair os bolinhos.
Mal sabia ele que tinha sido visto pelo seu novo vizinho a empurrar as notas para dentro da mochila e que, numa tentativa de ficar com o dinheiro, este o tentara atropelar.
Quando foi para casa, contou à mãe que tinha encontrado todas aquelas notas. Ela achou por bem que ele as fosse entregar à polícia, conselho que decidiu seguir. No entanto, ao sair de casa foi visto pelo vizinho a transportar o peluche, que achou a atitude muito estranha para um rapaz daquela idade e por isso decidiu segui-lo.
Sem saber que o perseguiam, Pedro ia apressadamente em direção à polícia, para entregar todo aquele dinheiro que estava escondido no peluche. O seu vizinho estava atento a cada passo dele, esperando o momento certo para o surpreender e roubar-lhe o peluche.
Àquela hora da noite, quando seguia por um caminho escuro, Pedro olhou para trás e reparou que estava a ser seguido por alguém. Por isso resolveu correr para chegar mais depressa à polícia e ver-se livre daquele dinheiro. Com a intenção de o roubar, o homem começou também a correr, e conseguiu ultrapassá-lo e bloquear-lhe o caminho. Foi então que, com um ar maléfico, disse:
- Apanhei-te!
- O que é que o senhor quer? - disse Pedro, com um ar assustado.
- Onde é que está o dinheiro? – perguntou o novo vizinho, agarrando-o pelo braço.
- Eu não sei do que é que o senhor está a falar! Tire as suas mãos de cima de mim!
Mostrando-se determinado em roubar o peluche, o vizinho atirou-o ao chão. No meio de tanta agressividade, Pedro não conseguiu deter o homem, e assim, este conseguiu o que queria. Satisfeito, correu em direção ao carro, deixando o rapaz no chão, de mãos a abanar. Este, triste e furioso, pensou em continuar o caminho até à esquadra e participar o roubo, mas a insegurança e o medo de que ninguém acreditasse nele era tanto que decidiu regressar a casa, determinado a contar tudo à mãe. Contudo, para sua surpresa esta não acreditou nele, achando que estava a mentir só para ficar com o dinheiro e que o escondera nalgum sítio antes de chegar a casa.

Muito aborrecido com esta reacção, Pedro não era capaz de acreditar, já que tudo lhe estava a correr mal, e naquele momento só pensava em vingar-se do vizinho. Por tudo isto, decidiu tomar medidas mais drásticas e foi visitar o seu amigo Bruno, com a intenção de ver se, juntos, conseguiam imaginar um plano para conseguir resgatar o dinheiro e fazer com que a mãe acreditasse nele.

No meio de tantos pensamentos, Pedro imaginara como seria se ambos, ele e o seu amigo, entrassem às escondidas em casa do novo vizinho e conseguissem resgatar o urso de peluche. Pedro já conhecia o jardim da parte de trás da sua casa, sabendo exatamente por onde entrar e como, e tinha em mente um plano que, a seus olhos, parecia ser o mais rápido e eficaz: entrar pela janela da cave do vizinho, subir para o andar de cima, procurar o urso de peluche e fugir. Talvez fácil demais, pensaram eles.

- O problema é: como vamos tirar o vizinho de dentro de casa? – perguntou o Bruno.
- Não sei, ele costuma estar sempre em casa. A minha mãe está sempre a pedir-me para ir oferecer-lhe bolinhos, e a nós nunca nos dão nada, – desabafou o Pedro.
- Eventualmente vai ter que dar agora: o urso de peluche! – exclamou o Bruno.
Depois de algum tempo a pensar como entrar sem serem vistos, decidiram estudar o horário do vizinho durante dois dias. A que horas saía, para onde ia, durante quanto tempo ficava fora e a que horas voltava. Depois de terem estudado bem o horário, tomaram então a resolução de criar um plano, mas, atrás da porta do quarto de Bruno, a sua mãe ouvira tudo, e abrira a porta de repente, olhando de maneira desconfiada, e preparando-se para dizer qualquer coisa.
Quando o Pedro e o seu amigo Bruno decidiram ir espiar o vizinho maléfico com o objetivo de roubar o peluche que continha todo o dinheiro, descobriram que o homem era ainda pior do que imaginavam… Quando estava quase a anoitecer, foram à socapa espreitar pela janela, apesar do enorme medo de serem apanhados, até que Bruno exclamou:
- Pedro! Temos que ir imediatamente embora! Este homem é completamente doido – dizia ele, aterrorizado.
- Mas o que é que aconteceu?
A cada palavra que saía da boca do amigo, Pedro ficava sem reacção possível… Ele tinha avistado corpos espalhados pela casa, enquanto o vizinho maléfico afiava várias facas com um olhar pérfido. Era um assassino em série.
Aterrorizados, os dois amigos começaram a correr para longe da casa do homem, mas com tanta pressa e receio não repararam no caixote do lixo no exterior da casa. Pedro tropeçou, fazendo ressoar um barulho que se fez ouvir em grande parte da vizinhança. Agora com ainda mais receio, após o Pedro se ter levantado rapidamente, os dois voltaram a correr ainda mais apressados em direção à casa do Pedro. Ao aproximarem-se da casa, o Bruno virou-se para Pedro e disse-lhe:
- Por agora vamos separar-nos. Vai para casa e não olhes cá para fora. Eu vou a correr até minha casa.
- Está bem, tem cuidado. - Respondeu o Pedro, e depois voltou-se e perguntou - O que fazemos em relação ao que descobrimos?
- Por agora nada… Bem, tem cuidado. Ligo-te quando chegar a casa. 
Quando o Pedro entrou em casa ouviu na televisão uma notícia sobre um novo caso de mistério acerca de várias pessoas que tinham desaparecido.
Enquanto o Bruno seguia o seu percurso para casa em passo apressado, estava com um mau pressentimento. Talvez fosse fruto da sua imaginação, mas tinha a sensação de estar a ser seguido.

Assustado com esse pensamento, apressou ainda mais o passo. Por um segundo virou-se para trás e deu de caras com um sorriso amarelo que lhe fez arrepiar até o último fio de cabelo: correndo atrás dele estava o vizinho maléfico, com um machado na mão.
Começou a gritar e a correr o mais depressa que conseguia, e a velocidade a que corria era tanta que podia sentir o ar fugir-lhe dos pulmões. Tinha a secreta esperança de que alguém o pudesse ajudar, e isso dava-lhe forças para gritar e correr mais, pois sabia que, se não conseguisse, iria acabar como um daqueles corpos que ele e o Pedro tinham visto no interior da casa do assassino

 
Continuou a correr, a tentar despistar o maléfico vizinho, até que se lembrou de um lugar onde se podia esconder.
Correu e correu, até que chegou.
O seu cansaço refletia-se na sua respiração profunda. A felicidade via-se nos seus olhos e o medo corria-lhe pelas veias, deixando-o inquieto.
Preocupava-o o facto de ignorar onde se encontrava o vizinho, se este o iria encontrar e principalmente como ficariam os seus pais se ele não escapasse, mas “a esperança é sempre a última a morrer”, e tinha muita fé em como iria sair dali rapidamente e VIVO!


A esperança mantinha-se por aqueles lados, enquanto o Pedro, que já se encontrava em casa, começou a ficar muito preocupado com o amigo, que nunca mais lhe dava notícias. Decidiu então telefonar à polícia e contar tudo.

A ansiedade refletia-se no suor que lhe corria pelos braços e pela testa, por isso decidiu antes ir até casa do vizinho para pelo menos ter a certeza de que o seu amigo estaria vivo e seguro. Calmamente e seguindo o mesmo caminho que já antes havia sido esquematizado pelos dois, e desta vez com mais cuidado com o caixote, conseguiu entrar na casa. Andou por todas as divisões, olhou para todos os corpos e, enojado, saiu daquele lugar pelo menos com uma certeza: o seu amigo estava a salvo. Mas veio-lhe à mente uma pergunta: se o Bruno não estava ali e não lhe tinha ligado, e a casa estava vazia, onde estava ele? E onde estava o dono da casa?

Já a caminho de casa, Pedro foi subitamente abordado por trás, e amordaçado com um pano, que o fez perder rapidamente os sentidos. Minutos depois acordou com um balde de água gelada que lhe foi atirado para cima pelo vizinho que, de tanta felicidade, não deixava de mostrar os seus dentes amarelos.

- Então meu jovem – disse ele. – Entrar em casa dos vizinhos sem ser convidado nem sempre acaba bem… – E rematou com uma gargalhada.

[Continuação escrita pela Rafaela]

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Cesário Verde: uma visão geral sobre a temátice e estilo da sua poersia

Temáticas:

A imagética Feminina


- A mulher fatal, altiva, aristocrática, “frígida”, que atrai/fascina o sujeito poético, provocando-lhe o desejo de humilhação. É o tipo citadino artificial, surge portanto associada à cidade, servindo para retratar os valores decadentes e a violência social. Esta mulher surge na poesia de Cesário incorporando um valor erótico que simultaneamente desperta o desejo e arrasta para a morte, conduzindo a um erotismo da humilhação (poemas Esplêndida, Vaidosa, Frígida).

 

- A mulher angélica, “tímida pombinha”, natural, pura, acompanhada pela mãe, embora pertencente à cidade, encarna qualidades inerentes ao campo. Desperta no poeta o desejo de proteção e tem um efeito regenerador (poema Frágil ou Débil).

 

Binómio cidade/campo


O contraste cidade/campo é um dos temas fundamentais da poesia de Cesário e revela-nos o seu amor ao rústico e natural, que celebra por oposição a um certo repúdio da perversidade e dos valores urbanos a que, no entanto, adere.

 

- A cidade personifica a ausência de amor e, consequentemente, de vida. Ela surge como uma prisão que desperta no sujeito “um desejo absurdo de sofrer”. É um foco de infeções, de doença, de MORTE. É um símbolo de opressão, de injustiça, de industrialização, e surge, por vezes, como ponto de partida para evocações, divagações.

 

- O campo, por oposição, aparece associado à vitalidade, à alegria do trabalho produtivo e útil, nunca como fonte de devaneio sentimental. Aparece ligado à fertilidade, à saúde, à liberdade, à VIDA. A força inspiradora de Cesário é a terra-mãe, daí surgir o mito de Anteu, uma vez que a terra é força vital para Cesário. O poeta encontra a energia perdida quando volta para o campo, anima-o, revitaliza-o, dá-lhe saúde, tal como Anteu era invencível quando estava em contacto com a mãe-terra.

O campo é, para Cesário, uma realidade concreta, observada tão rigorosamente e descrita tão minuciosamente como a própria cidade o havia sido: um campo em que o trabalho e os trabalhadores são parte integrante, um campo útil onde o poeta se identifica com o povo (poema Petiz). É no poema Nós que Cesário revela melhor o seu amor ao campo, elogiando-o por oposição à cidade e considerando-o “um salutar refúgio”.

 

A oposição cidade/campo conduz simbolicamente à oposição morte/vida. É a morte que cria em Cesário uma repulsa à cidade por onde gostava de deambular mas que acaba por aprisioná-lo.

 

Questão Social


O poeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, dos injustiçados, dos marginalizados e admira a força física, a pujança do povo trabalhador.

O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.

- Anatomia do homem oprimido pela cidade

- Integração da realidade comezinha no mundo poético

 

O Impressionismo adaptado ao Real


“A mim o que me preocupa é o que me rodeia”.

 

A poesia do quotidiano despoetiza o ato poético, daí que a sua poesia seja classificada como prosaica, concreta. O poeta pretende captar as impressões que os objetos lhe deixam através dos sentidos.

Ao vaguear, ao deambular, o poeta perceciona a cidade e o “eu” é o resultado daquilo que vê.

Cesário não hesita em descrever nos seus poemas ambientes que, segundo a conceção da poesia, não tinham nada de poético.

Cesário não só surpreende os aspetos da realidade, como sabe perfeitamente fazer uma reflexão sobre as personagens e certas condições.

A representação do real quotidiano é, frequentemente, marcada pela captação perfeita dos efeitos da luz e por uma grande capacidade de fazer ressaltar a solidez das formas (visão objetiva), embora sem menosprezar uma certa visão subjetiva – Cesário procura representar a impressão que o real deixa em si próprio e às vezes transfigura a realidade, transpondo-a numa outra.

 

Linguagem e Estilo

Cesário Verde é caracterizado pela utilização do Parnasianismo, que é a busca da perfeição formal através de uma poesia descritiva e fazendo desta algo de escultórico, esculpindo o concreto com nitidez e perfeição. O parnasianismo é também a necessidade de objetivar ou despersonalizar a poesia e corresponde à reação naturalista que aparece no romance. Os temas desta corrente literária são temas do quotidiano com um enorme rigor a nível de aspecto formal e há uma aproximação da poesia às artes plásticas, nomeadamente a nível da utilização das cores e dos dados sensoriais.


Através deste parnasianismo ele propõe uma explicação para o que observa com objetividade e, quando recorre à subjetividade, apenas transpõe, pela imaginação transfiguradora, a realidade captada numa outra que só o olhar de artista pode notar. 


Cesário utiliza também uma linguagem prosaica, ou seja, aproxima-se da prosa e da linguagem do quotidiano.

A obra de Cesário caracteriza-se também pela técnica impressionista, ao acumular pormenores das sensações captadas e pelo recurso às sinestesias, que lhe permitem transmitir sugestões e impressões da realidade.

A nível morfossintáctico recorre à expressividade verbal, à adjetivação abundante, rica e expressiva, por vezes em hipálage, ao colorido da linguagem e tem uma tendência para as frases curtas.

- Vocabulário concreto

- Linguagem coloquial

- Predomínio do uso do decassílabo e do alexandrino

- Uso do assíndeto, que resulta da técnica de justaposição de várias perceções

- Técnica descritiva assente em sinestesias, hipálages, na expressividade do advérbio, no uso do diminutivo e na utilização da ironia como forma de cortar o sentimentalismo.

Cesário Verde: a sua vida e a sua poesia


CESÁRIO VERDE (Poeta: 1855 – 1886)

QUANDO TUDO ACONTECEU...

 

1855: A 23 de fevereiro, num prédio da Rua da Padaria (junto à Sé de Lisboa), nasce José Joaquim CESÁRIO VERDE, filho de Maria da Piedade dos Santos Verde e de José Anastácio Verde.

1857: Peste em Lisboa; a família Verde refugia-se na sua quinta de Linda-a-Pastora.

1865: Os Verde passam a morar na Rua do Salitre (Lisboa). Cesário conclui a instrução primária e começa a estudar inglês e francês.

1872: Cesário começa a trabalhar na loja de ferragens do pai, na Rua dos Fanqueiros. Com 19 anos, tuberculosa, morre Maria Júlia, irmã de Cesário.

1873: Cesário matricula-se no Curso Superior de Letras, onde conhece e se torna grande amigo do escritor Silva Pinto. Publica os seus primeiros poemas no Diário de Notícias.

1874: Publica mais poemas no Diário de Notícias (Lisboa) e nos jornais do Porto Diário da Tarde e A Tribuna. Ramalho Ortigão crava-lhe uma Farpa a propósito do poema Esplêndida. Boémia revolucionária no “Martinho”.

1875: Cesário conhece e faz amizade com Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz). Continua a publicar poemas no Mosaico (Coimbra), n’A Tribuna e n’O Porto. Começa a dirigir a loja da Rua dos Fanqueiros e a quinta de Linda-a-Pastora.

1876: Desenvolve negócios. Frequenta a casa de Papança, na Travessa da Assunção, onde se cruza com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Os Verde mudam-se para a Rua das Trinas.

1877: Volta a colaborar no Diário de Notícias. Queixa-se dos primeiros sintomas de tuberculose.

1878: Passa a viver em Linda-a-Pastora. Nos jornais publica Noitada, Manhãs Brumosas, Em Petiz.

1879: Publica Cristalizações no primeiro número da Revista de Coimbra. É atacado pela republicana Angelina Vidal n’A Tribuna do Povo e pelo monárquico Diário Ilustrado.

1880: Publica O Sentimento dum Ocidental no número do Jornal de Viagens (Porto) dedicado ao tricentenário de Camões. Os Verde exportam maçãs para Inglaterra, Alemanha e Brasil.

1881: Cesário participa no “Grupo do Leão” e convive com Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Fialho de Almeida, Gualdino Gomes e com os pintores José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro.

1882:  Morre, tuberculoso, Joaquim Tomás, irmão de Cesário.

1883: Cesário viaja para França, numa tentativa malograda de exportar vinhos portugueses.

1884: Publica Nós. Deixa de frequentar os meios literários. Ativa negócios, produz, compra e exporta frutas. Recolhe-se a Linda-a-Pastora.

1885: Agrava-se o seu estado de saúde mas regressa a Lisboa e continua a trabalhar na loja da Rua dos Fanqueiros.

1886: Extremamente doente, instala-se em Caneças. Vai depois para casa de um amigo, no Lumiar (às portas de Lisboa), onde vem a morrer a 19 de julho.

1887: Silva Pinto edita O Livro de Cesário Verde.

 

PESTE

José Anastácio Verde tem uma loja de ferragens na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa. É um comerciante bem sucedido e dono ainda de uma quinta em Linda-a-Pastora (a uns quinze quilómetros da capital). Em 1852 casa com Maria da Piedade dos Santos. O casal vai morar num andar de um prédio na Rua da Padaria, próximo da velha Sé de Lisboa. Em 1853 nasce-lhes Maria Julia, a primogénita. Em 1855 o segundo filho, José Joaquim CESÁRIO. E no ano seguinte, Adelaide Eugénia, menina que morrerá com 3 anos. Em 1858, Joaquim Tomás, o quarto filho. E em 1862, Jorge, o quinto e último filho.

Próximo da Rua da Padaria há um arco escuro onde se acumulam excrementos e cabeças de peixe. A Baixa de Lisboa é toda assim, não lhe faltam focos de infeção em becos e vielas. No verão de 1857 irrompe a febre amarela, peste a ceifar a vida dos lisboetas. Os Verde abandonam a capital, refugiam-se em Linda-a-Pastora. Cesário evocará a fuga:

(...)
Foi quando em dois verãos, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade. 

Ora meu pai, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tantos nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.
(...)

Sem canalizações, em muitos burgos ermos,
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
e noite, amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d’inferno outros arruamentos.
(...)

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

 

MARIA JÚLIA

Aos 10 anos Cesário conclui a instrução primária e começa a estudar francês e inglês, prepara-se para ser o correspondente comercial da firma do pai.


Entretanto os Verde tinham-se mudado para um prédio da Rua do Salitre. Os ares, por ali, são mais saudáveis do que os da Rua da Padaria ou da Rua dos Fanqueiros (onde a família também chegara a morar). O que não evita que Maria Júlia, aos 19 anos (1872), morra tuberculosa. Cesário irá recordá-la, sempre:


(...)
Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma ténue e imaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rústica, aldeã.

E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!  

Ai daqueles que nascem neste caos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E - custa a crer - deixam viver os maus!
(...)

E que fazer se a geração decai!
Se a seiva genealógica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai! 

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausência! Ah! Como o ar nos falta,
Ó flor cortada, suscetível, alta,
Que assim secaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De refletir no túmulo! E medito
No eterno Incognoscível infinito,
Que as ideias não podem abranger!
(...)

 

UM POEMA E UMA FARPA

O desprazer de refletir no túmulo... Estar ocioso é estar doente, trabalhar é ter saúde! Aos 17 anos Cesário arregaça as mangas na loja da Rua dos Fanqueiros: escreve cartas para o estrangeiro, lança débitos e créditos, calcula a conversão das moedas, recebe caixeiros viajantes, compra e vende, pesa pregos e parafusos, monta e oleia fechaduras, experimenta ferramentas, atende valadores, calafates e marceneiros, ao balcão ouve, entende e vive as aflições do povo miúdo que labuta para ganhar a vida, muitas vezes a sobrevida.

Consome intensamente o dia. Nos fins de tarde, e à noite, gosta de ler, escreve poemas. Mas detesta abstrações, acha que o pensamento é o patamar superior dos sentidos, tangem-no excitados, sacudidos, o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato. Acha que um poema deve ser um cristal, superfícies várias, cada verso a refletir uma das faces do real.

Para escândalo do pai (literatos são ociosos...), em 1873 Cesário matricula-se no Curso Superior de Letras (como se elas lá estivessem...). Temor infundado, o de José Anastácio: Cesário é alérgico à retórica, à literatice impingida e, poucos meses depois da matrícula, arma umas discussões e abandona o Curso.

Cesário tem o furor da discussão, diz sempre o que pensa e bate-se por aquilo que acha certo, incansavelmente, não concilia. Mas quando reconhece que está errado, não hesita em dar o braço a torcer, com frontalidade. Esta sua postura irá atrair antipatias em vários meios, principalmente nos literários.

Consome intensamente o dia. Nos fins de tarde, e à noite, gosta de ler, escreve poemas. Mas detesta abstrações, acha que o pensamento é o patamar superior dos sentidos, tangem-no excitados, sacudidos, o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato. Acha que um poema deve ser um cristal, superfícies várias, cada verso a refletir uma das faces do real.

Da sua passagem pelo ateneu sobra-lhe apenas a amizade de Silva Pinto, candidato a escritor, cujo pai, um industrial, o expulsara de casa porque ousara liderar uma greve dos seus operários... Silva Pinto tem um ódio febril aos burgueses, é um republicano, é um socialista inflamado pela Comuna de Paris. Tudo nele é paixão, vê tudo a preto e branco, alto contraste, ou explorador ou explorado, ou isto ou aquilo, ou sim ou não. Começa por ter um desprezo radical por Cesário, esse aprendiz de comerciante, esse burguesinho metido a escritor... Mas ao ler os seus poemas converte-se no seu mais fervoroso admirador, no amigo para toda a vida. Cesário ampara-lhe os desequilíbrios, sensibiliza-o aquele amor alucinado aos oprimidos.

- Como tu tens tempo, meu amigo, para sofrer tanto!

E Silva Pinto responde-lhe:

- Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar no sofrimento!

Eduardo Coelho é o diretor do Diário de Notícias. Em tempos idos fora caixeiro na loja de José Anastácio Verde e continua a respeitar o antigo patrão. É quanto basta para Cesário conseguir publicar no jornal os seus primeiros poemas. Um deles, Esplêndida, escrito ao jeito de João Penha (Vinho e Fel), paródia antirromântica, merece a Farpa n.º 22  de Ramalho Ortigão:

“(...) Averigua-se que o realismo baudelaireano está fazendo mais numerosas e mais lamentáveis vítimas do que o velho romantismo de Byron, de Lamartine e de Musset. (...) Tal é a deplorável influência (...) na poesia moderna representada na obra de um dos seus cultores, o snr. Cesário Verde, ao qual sinceramente desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a ilustrar o seu nome, tornando-se cada vez menos Verde e mais Cesário.”

Uma farpa desperta instantaneamente a braveza de um touro. Esta Farpa irá certamente despertar o realismo instantâneo de Cesário.

 

BOÉMIA

Silva Pinto arrasta o poeta para a boémia revolucionária no “Martinho” das mesas espelhentas. Alto, magro, louro, ativo, sensual, Cesário tem boa figura, seduzem-no e seduz mulheres, mas as que mais o fascinam são atrizes, a Luísa Cândida - do “Condes” - , a Palmira de Souza - do “Variedades” -, e ainda a Tomásia Veloso, com quem, ao que parece, terá um romance. Fialho de Almeida irá descrevê-lo. Assim:

“O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada, de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, retilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”

E aí vem uma atriz, talvez a Tomásia, a saltitar por entre as obras de uma rua:

(...)
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!  

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!

 

BAUDELAIRE...?

O realismo baudelaireano... Sim, alguma coisa Cesário tomou de Baudelaire. Mas enquanto o francês fez da realidade um trampolim para alcançar os paraísos artificiais, o português vai bolinando por entre todas as coordenadas do real. A sua vida de comerciante e agricultor será a sua poesia. Até quando recorda Maria Júlia, observa:      

(...)
À procura da
libra e do shiling
Eu andava abstrato e sem que visse

Que o teu alvor romântico de
miss
Te obrigava a morrer antes de mim.
(...)  

Até quando passeia no campo, com uma prima, não se esquece de apontar:

(...)
Numa colina azul brilha um lugar caiado.
Belo! E arrimado ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéu de palha, desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.
(...)

Ao escrever a Silva Pinto, então a morar no Porto, Cesário define, define-se: "A mim o que me rodeia é o que me preocupa.”

Baudelaire ficou longe...

 

CONTROVERSAS E UM DUELO MALOGRADO

Cesário continua a publicar poemas no Diário de Notícias, no Diário da Tarde e n’A Tribuna (ambos do Porto) no Mosaico e n’A Evolução (estes de Coimbra). O seu implícito republicanismo provoca um violento ataque do monárquico Diário Ilustrado. Cesário responde em verso:

(...)
Na praça, de manhã, havia, ó rei brutal!
Montões de sordidez horrível e avinhada...
- Nascera o
Ilustrado - um vómito real!

Contudo, a inexistência de retórica nos seus versos, leva um tal Juvenal Pigmeu a publicar n’A Tribuna do Povo um artigo insultuoso. Cesário desafia-o para um duelo e o ridículo vem à tona: Juvenal Pigmeu é pseudónimo de Angelina Vidal, pedagoga e ativista republicana... 

Atacado por monárquicos e republicanos, pela sua singularidade, Cesário está plantado para além do tempo que lhe cabe viver agora... Escreve ao seu amigo Bettencourt Rodrigues, estudante de Medicina em Paris: está farto, tem vontade de sair de Portugal, foco de mandriice e de asneiras...

 

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

O Hotel Pelicano fica na Rua dos Fanqueiros, perto da loja dos Verde. A vizinhança e o gosto pelas letras promovem a amizade entre o hóspede António de Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz) e Cesário. Entretanto este vai tomando a direção da loja e da quinta, desenvolve negócios, exporta maçãs para a Inglaterra, a Alemanha e o Brasil, escreve versos.

Mais tarde, na sua casa da Travessa da Assunção, Papança promoverá saraus literários onde Cesário se cruza com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Nenhum prestará atenção aos seus poemas, onde já se viu um comerciante a poetar? Ainda por cima opinativo, conflituoso...

1880, comemorações do tricentenário da morte de Camões! O Jornal de Viagens, do Porto, lança um número especial: Portugal a Camões. Nele, entre inéditos de autores vários, vem publicado O Sentimento dum Ocidental, poema de Cesário em quatro cantos:  I - Ave-Marias, II - Noite fechada, III - Ao gás, IV - Horas mortas.

(...)
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,

Toldam-se de uma cor monótona, londrina.

(...)
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

(...)
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”.

(...)
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos,
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

(...)
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!

(...)
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre as pedras da calçada.  

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
 

Andam todos distraídos, ninguém repara neste caudal. Só decénios depois, muitos, Fernando Pessoa (um simples empregado de escritório, um bêbado, um doido que julga ser poeta) é que irá induzir o seu heterónimo Álvaro de Campos a bradar: 

- Ó Cesário Verde, ó Mestre!

 

O GRUPO DO LEÃO

Em 1881 começam as reuniões do Grupo do Leão (referência ao restaurante “Leão de Ouro”). Literatos muitos: Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Mariano Pina, Fialho de Almeida, D. João da Câmara, Gualdino Gomes e Cesário, entre outros. Também pintores, tais como José Malhoa, Silva Porto e os irmãos Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro. Fialho mostra-se insatisfeito com o naturalismo na pintura, afirma que a arte não deve ser uma cópia da natureza, antes a “expressão roaz do pensamento”. Cesário apoia Fialho, com veemência. Mas os pintores discordam, estão ancorados no imutável céu azul, nas vaquinhas malhadas por entre os prados verdes, nas messes loiras, nos rebanhos ao entardecer, nos muros cobertos de musgo, nas pontes sobre os riachos, nos moinhos lá no alto das colinas...

Mais tarde, ao pintar o Grupo do Leão, Columbano irá esquecer-se de colocar Fialho e Cesário entre os convivas. Esquecimento? Talvez não seja...

E se alguém já sabe (e talvez Alberto de Oliveira saiba) das exposições impressionistas de Paris (a primeira ocorreu em 1874), cala-se! Do Grupo do Leão é um não-pintor, é Cesário quem antecipa o impressionismo em Portugal. O seu poema De Tarde é como tela de Renoir:

Naquele “pic-nic” de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, indo o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

 

SE EU NÃO MORRESSE, NUNCA

Mas afinal o anticlericalismo sempre está na poesia de Cesário:

(...)
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero;
(...)

Também ali está a sátira ao militarismo de opereta:

(...)
De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar de barretina
E galões marciais de pechisbeque.
(...)  

Ali está a simpatia pelas classes oprimidas:

(...)
Povo! No pano ora rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas.
Listrões de vinho lançam-lhe divisas
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!
(...)

Ali está o seu enlevo pelos frutos a vindimar:

(...)
Ó pobre estrume, como tu compões
Esses pâmpanos doces como afagos!
“Dedos de dama”: transparentes bagos!
“Tetas de cabra”: lácteas carnações!
(...)  

Mas também está o que a indolência das meninges não deixa perceber, a alucinada justaposição de dois instantes do real, abrangência:

(...)
E nesse mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.
(...)  

Ali estão os aparelhos para descobrir e assinalar a realidade:

(...)
Eu tudo encontro alegremente exato,
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos

E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato.
(...)
 

Ali está um advérbio a subverter o corriqueiro:

(...)
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
(...) 

Também um adjetivo a perturbar:

E os olhos de um caleche espantam-me sangrentos.

Ali estão os pequenos prazeres quotidianos:

Cheiro salutar e honesto ao pão no forno.

Ali estão enjauladas as crianças da capital:

Os querubins do lar flutuam nas varandas.

Ali está um pormenor a ressoar durante a noite, cidade deserta:

Um parafuso cai nas lajes, às escuras.

Ali está a súbita associação de vegetais com as formas femininas:

(...)
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
(...)  

Ali estão as trabalhadoras, as genuínas, não as que a Angelina pespegava em panfletos:

(...)
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
(...)

Ali está a sua mágoa, arredar o real o poeta não consegue:

(...)
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
(...)

Contudo, está ali também a sua esperança, embora vã:

(...)
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas...
(...)

 

RIQUEZAS QUÍMICAS NO SANGUE...

Em 1876 os Verde fogem do centro da capital, mudam-se para a Rua das Trinas. No mesmo ano o Dr. Sousa Martins avisa Silva Pinto:

- O poeta Cesário Verde está irremediavelmente perdido.

Em 1877 Cesário queixa-se:

- Agora trago sempre no pescoço umas escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa. Não sei se é resultado sifilítico, se o que é.

Em 1882 morre, tuberculoso, Joaquim Tomás, irmão de Cesário. Como dez anos antes morrera Maria Júlia...

(...)
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebates ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas
Com que se despediu de todos e do mundo!
(...)

Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com os sapatos ensebados
E ter riquezas químicas no sangue.
(...)

 

DEIXA-ME DORMIR

Em 1883 Cesário vai a Paris numa tentativa malograda de exportar vinhos portugueses.

Regressa. Sente-se debilitado mas continua a trabalhar na loja e na quinta, ficar ocioso é dar o flanco à doença. Em 1884, em Linda-a-Pastora, ainda tenta exorcizar a morte, esse medonho muro:

(...)
Oh! que brava alegria eu tenho quando
Sou tal-qual como os demais! E, sem talento,
Faço um trabalho técnico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando.
(...)

Em 1886, para fugir à humidade marítima de Linda-a-Pastora e aos consequentes acessos de tosse e hemoptises, vai para Caneças, a dois passos de Lisboa, porém serra, clima seco. Silva Pinto e António Papança visitam-no. Cesário tem apenas 31 anos mas já perdeu as ilusões:

- Curo-me? Sim, talvez. Mas como ficou eu? Um cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me a chuva, entra-me o vento no corpo escangalhado...

Resolve subitamente abandonar Caneças, fugir, fugir... Recolhe-se à casa de um amigo, junto ao Paço do Lumiar, às portas de Lisboa.

No patamar da escada José Anastácio Verde e Silva Pinto encontram-se, abraçam-se, choram.

A 19 de julho, Jorge, o último dos irmãos, pergunta a Cesário:

- Queres alguma coisa?

- Não quero nada. Deixa-me dormir.

São as últimas palavras do poeta.

No ano seguinte Silva Pinto colige os versos e edita O LIVRO DE CESÁRIO VERDE, 37 poemas, cento e muitas páginas, 200 exemplares.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Cesário Verde (1855 - 1886) - um curto apontamento sobre a sua vida e obra


Nascido José Joaquim Cesário Verde, e filho de um comerciante que possuía uma loja de ferragens em Lisboa e uma quinta em Linda-a-Pastora, Cesário Verde passa a infância entre o espaço citadino e o espaço rural, binómio que será marcante na sua obra.

Em 1873, matricula-se no Curso Superior de Letras, que abandonará pouco depois, mas onde trava conhecimento com algumas figuras da vida literária de Oitocentos, como Silva Pinto, que se tornará seu grande amigo.

Durante a juventude, tem a oportunidade de viajar pelos grandes centros cosmopolitas europeus (Paris e Londres), na qualidade de correspondente comercial da loja do seu pai, e deixa vários poemas dispersos por jornais e revistas, como o Diário de Notícias, o Diário da Tarde, Novidades, A Harpa, Tribuna, Mosaico, A Evolução, Ocidente, Renascença, A Ilustração ou o Jornal de Viagens, acolhidos com apreciações críticas quase sempre desfavoráveis (Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Teófilo Braga) ou simplesmente ignorados.

Em 1874, aparece anunciada a edição para breve de um livro de Cesário Verde, intitulado Cânticos do Realismo, o que, porém, não sucederia. A partir de 1879, desiludido com a incompreensão do mundo intelectual ("A crítica segundo o método de Taine / Ignoram-na."; "A imprensa / Vale um desdém solene", de "Contrariedades"), Cesário dedica-se cada vez mais a assistir o pai na loja de ferragens e na exploração da quinta.

Em 1882, morre-lhe um irmão, de tuberculose, tal como a irmã, morta dez anos antes. Aos 31 anos, ele próprio morre, vítima da mesma doença. Em 1887, Silva Pinto publica a primeira edição, limitada, de O Livro de Cesário Verde, destinada a ofertas a amigos do escritor. Só em 1901 é dada à estampa uma segunda edição, já distribuída pelas livrarias.

A poesia de Cesário Verde é prefiguradora de uma modernidade estética só inteiramente reconhecida no século XX. Como afirmou Joel Serrão, "a leitura e o estudo dos testemunhos dos conviventes de Cesário dados a público aquando da morte do poeta provam que ninguém, ninguém mesmo, entendera a excepcional qualidade da poesia que o poeta negociante legara ao sempre incerto futuro", e dificilmente cabe nas classificações da história literária.

Com efeito, se a representação pictórica dos ambientes e a descrição plástica da realidade, alicerçada em notações sensoriais
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias.
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

(de "Num bairro moderno"),
o aproximam do
Realismo, do Parnasianismo e até do Naturalismo em poesia, mediante a busca do célebre livro baseado no "real" e na "análise"; se o interesse votado aos fracos e humildes ecoa ainda influências do Romantismo social , como podemos ver em:
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trémulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito.
Pesada e secamente, em cima duns tapumes

(de "Desastre")
ou em:
Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

(de "Contrariedades),
não é menos verdade que a imaginação e o trabalho do poeta conduzem quase sempre a uma recriação impressionista ou fantasista da realidade.

Algumas das características principais na escrita de Cesário Verde são: um vocabulário objectivo; imagens extremamente visuais de modo a dar uma dimensão realista do mundo (daí poeta pintor); o pormenor descritivo; a mistura do físico e do moral; a combinação de sensações; o uso de sinestesias, metáforas, comparações; o emprego de dois ou mais adjectivos a qualificar o mesmo substantivo; a utilização de quadras, em versos decassilábicos ou alexandrinos; a utilização do
“enjambement”.

Dados biobibliográficos
Data e local de nascimento:
25 de Fevereiro de 1855, em Lisboa.
Data e local de morte:
19 de Julho de 1886, em Lisboa.
Outras obras editadas:
Obra Completa de Cesário Verde, 1964; Obra Poética e Epistolografia, 1999; O Sentimento dum Ocidental, 2003.