quarta-feira, 27 de novembro de 2013

História em continuação - episódio 8


Quando vinha da escola pelo atalho do costume, um caminho que cortava pelo meio de um terreno meio selvagem que no inverno ficava empapado de lama, o Pedro deu com um pedregulho que não lhe era familiar naquele sítio. Das tantas e tantas vezes que por ali tinha passado já conhecia todas as pedras do caminho, ao ponto de quase as tratar pelo nome.Com algum esforço, revirou-o e deu com uma data de maços de notas de 500 euros. Nunca tinha visto sequer uma nota de quinhentos, quanto mais uma quantidade destas. De quem seria aquele dinheiro? Quem o teria ali deixado? Quanto é que estaria ali no total? Uma fortuna, certamente.

Olhou para um lado e outro para ver se não vinha ninguém e se não estava a ser observado. Agachou-se e colocou a sua mochila ao lado dos maços. Começou então a empurrá-los para o seu interior.

Depois de tudo muito bem arrumado, o Pedro seguiu pelo seu caminho habitual, em direção a casa. Com os fones nos ouvidos, tentava o seu melhor para evitar pensar na pesada quantidade de dinheiro que guardava consigo dentro da mochila.

Mas era tão difícil… No meio de um turbilhão de pensamentos, entendeu que estava mais perto ainda do que pensava de chegar ao seu destino. E no fim, de tão distraído que ia, a pensar em não pensar, quase foi atropelado por um carro que passava na rua. A passadeira estava claramente à sua frente, mas ia tão distraído que até se esqueceu de ver se vinha algum carro para poder no fim atravessar a rua. O susto, pelo menos, pareceu trazê-lo de volta à realidade. Talvez isso tivesse acontecido devido à buzinadela estridente que ouviu, ou talvez pelo olhar fixo do condutor que não saía de cima dele, mesmo depois de Pedro ter atravessado a passadeira e ficar mais e mais perto de casa.- Mas que mal disposto… - murmurou o rapaz.

Apesar do susto, o Pedro continuou absorvido nos seus pensamentos. Que atitude iria ter quando chegasse a casa? Contava aos pais? Guardava o dinheiro num lugar seguro ou entregava-o simplesmente à polícia? Tantas questões e nenhuma resposta.

Com estas dúvidas na sua cabeça, o rapaz relembrou o olhar fixo do condutor, não imaginando sequer que este o continuava a perseguir. Ao chegar a casa e estando sozinho, foi a correr para o quarto, fechando a porta. Sentou-se na cama, abriu a mochila e retirou o dinheiro de dentro dela, arregalando os olhos:- Onde irei guardar este dinheiro todo? Não me recordo de ter apanhado tanto. Fixando o olhar no monte de dinheiro, decidiu ir buscar uma folha e uma caneta, para fazer uma lista das ideias que tinha, mas eram tantas que não sabia por onde começar.

Sentou-se em frente à secretária e rapidamente começou a passar para o papel todas as ideias que lhe surgiam:

• “Fazer uma viagem pelo mundo;”

• “Ajudar a minha família;”

• “Ter uma grande casa...”

Estava de tal forma contente que até parecia uma criança dentro de uma loja de doces.

A excitação era tanta, devido à possibilidade de puder vir a concretizar todos os seus sonhos, que até se esqueceu que ainda tinha que resolver um problema: onde iria esconder as notas?

De repente veio-lhe à memória a imagem do condutor que quase o tinha atropelado. Sentiu um arrepio. Algo lhe dizia que aquele homem não era boa pessoa.

Pedro pensou, pensou, voltou a pensar, e não lhe ocorria nenhuma ideia de onde guardar o dinheiro. Olhou para um lado e para o outro, e de repente fez-se um "clique" na cabeça dele. Deitou um olhar fixo ao urso de peluche e teve uma ideia brilhante:

- Ainda bem que a avó me ensinou a coser.

Rapidamente descoseu o peluche e substituiu o algodão pelas notas. Coseu o urso e pensou que assim ninguém iria saber de nada.

À hora do jantar, quando já estavam todos sentados à mesa, a mãe perguntou-lhe:

- Depois podes levar-me aqueles bolinhos ao novo vizinho?

- Estás sempre a dar coisas aos outros, mãe. Já viste que ninguém te dá nada?

- disse ele.

A mãe, estupefacta com a resposta do filho, disse logo:

 - Eu não faço isto para me darem algo em troca, Pedro! E fico muito triste que penses assim, porque não foi essa a educação que te dei.

Quando acabou de comer, Pedro foi a casa do novo vizinho. Tocou à campainha e, para seu espanto, quem abriu a porta foi o condutor que quase o tinha atropelado.

O homem reconheceu-o mas nada disse, e Pedro, nervoso, ia deixando cair os bolinhos.

Mal sabia ele que tinha sido visto pelo seu novo vizinho a empurrar as notas para dentro da mochila e que, numa tentativa de ficar com o dinheiro, este o tentara atropelar.

Quando foi para casa, contou à mãe que tinha encontrado todas aquelas notas. Ela achou por bem que ele as fosse entregar à polícia, conselho que decidiu seguir. No entanto, ao sair de casa foi visto pelo vizinho a transportar o peluche, que achou a atitude muito estranha para um rapaz daquela idade e por isso decidiu segui-lo.

Sem saber que o perseguiam, Pedro ia apressadamente em direção à polícia, para entregar todo aquele dinheiro que estava escondido no peluche. O seu vizinho estava atento a cada passo dele, esperando o momento certo para o surpreender e roubar-lhe o peluche.

Àquela hora da noite, quando seguia por um caminho escuro, Pedro olhou para trás e reparou que estava a ser seguido por alguém. Por isso resolveu correr para chegar mais depressa à polícia e ver-se livre daquele dinheiro. Com a intenção de o roubar, o homem começou também a correr, e conseguiu ultrapassá-lo e bloquear-lhe o caminho. Foi então que, com um ar maléfico, disse:

- Apanhei-te!

  - O que é que o senhor quer? - disse Pedro, com um ar assustado.
   - Onde é que está o dinheiro? – perguntou o novo vizinho, agarrando-o pelo braço.
   - Eu não sei do que é que o senhor está a falar! Tire as suas mãos de cima de mim!
Mostrando-se determinado em roubar o peluche, o vizinho atirou-o ao chão. No meio de tanta agressividade, Pedro não conseguiu deter o homem, e assim, este conseguiu o que queria. Satisfeito, correu em direção ao carro, deixando o rapaz no chão, de mãos a abanar. Este, triste e furioso, pensou em continuar o caminho até à esquadra e participar o roubo, mas a insegurança e o medo de que ninguém acreditasse nele era tanto que decidiu regressar a casa, determinado a contar tudo à mãe. Contudo, para sua surpresa esta não acreditou nele, achando que estava a mentir só para ficar com o dinheiro e que o escondera nalgum sítio antes de chegar a casa.
    Muito aborrecido com esta reacção, Pedro não era capaz de acreditar, já que tudo lhe estava a correr mal, e naquele momento só pensava em vingar-se do vizinho. Por tudo isto, decidiu tomar medidas mais drásticas e foi visitar o seu amigo Bruno, com a intenção de ver se, juntos, conseguiam imaginar um plano para conseguir resgatar o dinheiro e fazer com que a mãe acreditasse nele.

 [Continuação escrita pela Sandra]

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Padre António Vieira e o «Sermão de Santo António aos Peixes»

SUMÁRIO: O Padre António Vieira. Dados essenciais da sua biografia. O orador e o Sermão de Santo António aos peixes. Comentário ideológico, estilístico e estrutural.

Nasceu, como Manuel de Meio, em 1608, em Lisboa, este incomparável génio da parenética sacra portuguesa. Em 1635 é ordenado membro da Companhia de Jesus, no Brasil, para onde partiu em 1614, na companhia do pai. E a sua grande carreira de orador e de político começa em Lisboa, em 1642. Fracassaram as duas tentativas que fez, em Paris, para o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, com a filha do duque de Orleães, e outros fracassos assinalaram a sua incansável atividade de diplomata, quer na Holanda, quer, mais tarde, na Itália. E, em 1652, ei-lo, novamente, no Brasil, a dar-se ao trabalho de missionação. Era necessário defender os Ameríndios da cupidez e violência dos colonos. Percorre incansavel­mente o Maranhão, o Amazonas, o Pará, a promover essa grande massa de nativos. Levantam-se hostilidades, é obrigado a vir a Lisboa advogar a causa junto do Rei. Mas em breve, nos sermões do Brasil, retoma a sua atividade de apóstolo. Em 1663, já em Coimbra, começa a ser vítima da perseguição do Santo Ofício, quer com base na obra Esperança de Portugal, de tendência profética, marcadamente sebastianista, quer acusando-o de simpatizante da causa judaica. Esteve preso dois anos e a pena que o privava para sempre do exercício de pregador foi suprimida com a deposição de D. Afonso VI. Entretanto vai a Roma, onde conquista fama, e regressa a Portugal reabilitado e engrandecido, partindo definitivamente para o Brasil em 1681, onde morreu, com perto de 90 anos, em 1697.

A obra

Não podia estudar-se a obra de Vieira sem um certo conhecimento da ambiência política em que se moveu, a qual, pelo seu clima de agitação, tão favorável foi ao seu temperamento nervoso e vivo. Por isso, tanto podemos encontrar nele o sermão do missionário como o do político, o sermão de crítica literária como o sermão panegirista, onde mais nos surpreende a elegância da sua prosa incisiva, penetrante e geometricamente desenhada do que a profundidade do pensamento e dos juízos.

Vieira não se apaixona pelo cartesianismo que orienta a oratória de Fénelon e Bossuet e de que é contemporâneo, mas processa-se norteado pela escolástica medieval em que se formara.

Por isso, consegue o orador fugir aos exageros do cultismo, procurando, com um malabarismo surpreendente de argumentação, desenvolver o «conceito predicável» que se propunha tratar, segundo a oratória do seu tempo, entre nós, enquanto lá fora a oratória se processava alheia às explicações sobrenaturais, fora das alegorias que a Bíblia lhes oferecia e que fora a base da Escolástica.

Combativo, habilidoso, arrojado, entrincheirado no púlpito, que poder de convicção e de ataque verbal o seu, movido pela certeza de que apresentava uma causa justa, ou defendia uma posição injustamente julgada!

Apreciemos dois dos seus muitos sermões - aproximadamente duzentos - e procuremos neles desenvolver alguns aspetos mais característicos da sua realização literária no género.

 
SUMÁRIO: As qualidades estilísticas da oratória do Padre António Vieira exemplificadas através da sua obra.

A prosa do Padre António Vieira oferece, em geral, larga exemplifi­cação para os processos que caracterizam a linguagem.

A excelência da sua obra resulta, principalmente, da elegância da sua prosa, da sua facilidade de expressão. Apreciemos, pois, alguns dos seus atributos e alguns dos processos que contribuíram para o seu enriquecimento.
 
Características do seu estilo

- concisão - «É a luz mais benigna que o Sol; porque o Sol alumia, mas abrasa; a luz alumia, e não ofende.»

«A maior pensão com que Deus criou o homem é o comer. Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis que todo ele se vem a resolver em buscar o pão para a boca.»

«Também esses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras; comeu o tempo as pedras; também as pedras morrem.»

- clareza - «Que é uma barca senão uma república pequena? E que é uma monarquia, senão uma barca grande?»

- unidade - «É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta...»

É esta uma qualidade evidente em qualquer definição que o orador apresente.

Observe-se, ainda, o belíssimo trecho em que define a alma. «Quereis ver o que é uma alma? Olhai (diz Santo Agostinho) para um corpo sem alma. Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências?... Se o corpo é de um artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores?... A alma. Se o corpo morto é de um soldado... o valor... a constância... o levar na lâmina de uma espada a vida própria e a morte alheia: quem fazia tudo isto? A alma». E desta forma confirma a exce­lência da alma e a define, referindo-se ainda aos príncipes, aos santos e, até, à formosura.

- ritmo - «Mude a victória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia que só a Fé romana, que professamos, é Fé, e só ela a verdadeira e a vossa.» - Note-se o arrebatamento das primeiras frases, curtas, rápidas, comandadas pelo verbo, lançadas à maneira de um imperativo e o espraiar com que o mesmo período termina a lembrar a vertigem das ondas, a caminho da praia e o seu refluir largo e silencioso.

- harmonia - «As primeiras criaturas que com as vozes nos envergonham, entre aquelas que o mesmo Senhor criou, mas não remiu, são as aves. Que avesinha há ou tão pintada como o pintassilgo, ou tão mal vestida como rouxinol, que não rompa o silêncio da noite com dar ou cantar as graças ao seu Criador, festejando a boa-vinda da primeira Cruz ou cha­mando por ela?»

- propriedade, precisão, vernaculidade - Como ele próprio refere, a propó­sito da classe de peixes - os Pegadores. E, ainda: «Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, rude, informe...» ou: «importa que daqui por diante sejais mais repúblicas e zelosos do bem comum».

- originalidade e variedade - «Que coisa é o oiro e a prata, senão uma terra de melhor cor 1 E que coisa são as pérolas e os diamantes, senão uns vidros mais duros? Que coisa são as galas, senão um engano de muitas cores? ... Que coisa é a formosura senão uma caveira com volante por cima? Tirou a morte aquele véu, e fugis hoje do que ontem adoráveis...»

- sublimidade - «Oh Deus! Oh Deus! Quantas graças devemos à fé que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, a vossa justiça e providência! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel»

Observemos, agora, alguns processos estilísticos dos muitos que enriquecem sua obra.

- hipérbato - «Fazer pouco fruto, pode proceder de um de três princípios.»

- anacoluto - «Santo António... abriu-lhe Deus um dia os olhos...»

- pleonasmo - «Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo.»

- anáfora - «o pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.»

- elipse - «Peixes! quanto mais longe dos homens, tanto melhor...»

- zeugma - «Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma.»

- interrogação - «Parece-vos muito que a voz de uma trombeta haja de achar obediência nos mortos? Ora reparai, em outro milagre maior...»; «Final­mente, que coisa é a mesma vida, senão uma lâmpada acesa - vidro e fogo?»

- exclamação - «Oh trato desumano em que a mercancia é o homem! Oh mercancia diabólica em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos são das próprias!»

- apóstrofe - «Pois isto se há de sofrer, Deus meu? quando quizestes entregar vossas ovelhas a 5. Pedro, examinaste-lo três vezes se vos amava. E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão a lobos?» - «Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia.»

- antítese - «Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando-se, os escravos perecendo à fome; os se hores nadando em oiro e prata, os escravos carre­gados de ferros...»

- ironia - «É possível que os peixes ajudem à salvação dos homens, e os homens lancem ao mar os ministros da salvação.» Esta frase exemplifica, ao mesmo tempo, o quiasmo ou trocadilho cruzado.

- gradação crescente - «É a guerra aquele monstro... aquela tempestade... aquela calamidade...»

- comparação - «Corações embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança.» É a com­paração por semelhança. Mas no texto em que fala no trabalho do fundidor que, usando a mesma substância - o metal - fazendo-o sair pela mesma boca, apenas entrando por ouvidos diferentes, fabrica, por um lado, S. Bar­tolomeu, por outro o diabo aos seus pés, faz comparação por contraste.

- metáfora - é a síncope da comparação. «O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, o caminho e a terra boa, em que o trigo cai, são os diversos corações dos homens...» «As palavras brandas do adulador são redes que ele arma para tomar nelas o adulado.»

- alegoria - Todo o Sermão de Santo António aos Peixes se desenvolve através de alegorias - os pega dores são os parasitas ... , o polvo é a imagem do traidor.

- prosopopeia - «Bem mal cuidava o marfim na sua fortuna, quando se via endurecer nos dentes dos elefantes ... »

- metonímia - Referimos, em especial, a antonomásia que António Vieira usou intensamente no Sermão da Sexagésima, como indicámos.

- sinédoque - «Uma só árvore lhe dá o vestido.»

Realce-se ainda:

- pinturesco - «As flores que anoiteceram secas e murchas porque carecem de vozes, também declaram os seus afetos com lágrimas, posto que lhes não falte a melodia para louvar a quem as fez tão formosas» (refira-se, oportunamente, a animização). «As nuvens bordadas de encarnado e ouro, os mares com as ondas crespas em azul e prata, as árvores com as folhas voltadas ao céu, e com a variedade do seu verde natural então mais vivo...»

- o realismo - A descrição de estratégia das tartarugas, na carta ao Provincial.

- invenção - Como vimos, é prodigioso o poder inventivo de Vieira quando

ajusta os passos da Escritura para argumentar os fins a que visam as suas palavras.

- definição - «É a guerra aquele monstro ... » Pode fazê-lo pela imagem metafísica, como aqui, ou pela etimologia, que é o caso da calamidade com a origem em cálamo - a cana de que se faziam todas as penas, fonte de todas as calamidades -, ou pelo raciocínio filosófico.

- análise - O belo trecho em que Vieira define a alma, enumerando as várias manifestações e atributos do sábio, do artífice, do soldado, do príncipe, do santo, do pecador e da beleza para concluir que tudo isso que desapa­receu, quando o corpo deixou de viver, nada mais era do que a alma.

No Sermão de Santo António aos Peixes usa Vieira do método dedutivo, descendo do geral para o particular, como ele próprio propõe.

Quando fala da conversão de Inácio de Loiola apresenta a causa logo seguida do efeito.

Abundam também nas suas peças oratórias os exemplos com que argumenta os seus juízos.

Outros processos poderíamos ainda registar, como o jogo etimológico, os trocadilhos, a exclamação enfático. Mas ficamos por aqui.

 
In Lilaz Carriço, Literatura Prática 11

História em continuação - episódio 7

Quando vinha da escola pelo atalho do costume, um caminho que cortava pelo meio de um terreno meio selvagem que no inverno ficava empapado de lama, o Pedro deu com um pedregulho que não lhe era familiar naquele sítio. Das tantas e tantas vezes que por ali tinha passado já conhecia todas as pedras do caminho, ao ponto de quase as tratar pelo nome. Com algum esforço, revirou-o e deu com uma data de maços de notas de 500 euros. Nunca tinha visto sequer uma nota de quinhentos, quanto mais uma quantidade destas. De quem seria aquele dinheiro? Quem o teria ali deixado? Quanto é que estaria ali no total? Uma fortuna, certamente.
Olhou para um lado e outro para ver se não vinha ninguém e se não estava a ser observado. Agachou-se e colocou a sua mochila ao lado dos maços. Começou então a empurrá-los para o seu interior.
Depois de tudo muito bem arrumado, o Pedro seguiu pelo seu caminho habitual, em direção a casa. Com os fones nos ouvidos, tentava o seu melhor para evitar pensar na pesada quantidade de dinheiro que guardava consigo dentro da mochila.
Mas era tão difícil… No meio de um turbilhão de pensamentos, entendeu que estava mais perto ainda do que pensava de chegar ao seu destino. E no fim, de tão distraído que ia, a pensar em não pensar, quase foi atropelado por um carro que passava na rua. A passadeira estava claramente à sua frente, mas ia tão distraído que até se esqueceu de ver se vinha algum carro para poder no fim atravessar a rua. O susto, pelo menos, pareceu trazê-lo de volta à realidade. Talvez isso tivesse acontecido devido à buzinadela estridente que ouviu, ou talvez pelo olhar fixo do condutor que não saía de cima dele, mesmo depois de Pedro ter atravessado a passadeira e ficar mais e mais perto de casa.- Mas que mal disposto… - murmurou o rapaz.
Apesar do susto, o Pedro continuou absorvido nos seus pensamentos. Que atitude iria ter quando chegasse a casa? Contava aos pais? Guardava o dinheiro num lugar seguro ou entregava-o simplesmente à polícia? Tantas questões e nenhuma resposta.
Com estas dúvidas na sua cabeça, o rapaz relembrou o olhar fixo do condutor, não imaginando sequer que este o continuava a perseguir. Ao chegar a casa e estando sozinho, foi a correr para o quarto, fechando a porta. Sentou-se na cama, abriu a mochila e retirou o dinheiro de dentro dela, arregalando os olhos:- Onde irei guardar este dinheiro todo? Não me recordo de ter apanhado tanto. Fixando o olhar no monte de dinheiro, decidiu ir buscar uma folha e uma caneta, para fazer uma lista das ideias que tinha, mas eram tantas que não sabia por onde começar.
Sentou-se em frente à secretária e rapidamente começou a passar para o papel todas as ideias que lhe surgiam:
• “Fazer uma viagem pelo mundo;”
• “Ajudar a minha família;”
• “Ter uma grande casa...”
Estava de tal forma contente que até parecia uma criança dentro de uma loja de doces.
A excitação era tanta, devido à possibilidade de puder vir a concretizar todos os seus sonhos, que até se esqueceu que ainda tinha que resolver um problema: onde iria esconder as notas?
De repente veio-lhe à memória a imagem do condutor que quase o tinha atropelado. Sentiu um arrepio. Algo lhe dizia que aquele homem não era boa pessoa.
Pedro pensou, pensou, voltou a pensar, e não lhe ocorria nenhuma ideia de onde guardar o dinheiro. Olhou para um lado e para o outro, e de repente fez-se um "clique" na cabeça dele. Deitou um olhar fixo ao urso de peluche e teve uma ideia brilhante:
- Ainda bem que a avó me ensinou a coser.
Rapidamente descoseu o peluche e substituiu o algodão pelas notas. Coseu o urso e pensou que assim ninguém iria saber de nada.
À hora do jantar, quando já estavam todos sentados à mesa, a mãe perguntou-lhe:
- Depois podes levar-me aqueles bolinhos ao novo vizinho?
- Estás sempre a dar coisas aos outros, mãe. Já viste que ninguém te dá nada? - disse ele.
A mãe, estupefacta com a resposta do filho, disse logo:
 - Eu não faço isto para me darem algo em troca, Pedro! E fico muito triste que penses assim, porque não foi essa a educação que te dei.
Quando acabou de comer, Pedro foi a casa do novo vizinho. Tocou à campainha e, para seu espanto, quem abriu a porta foi o condutor que quase o tinha atropelado.
O homem reconheceu-o mas nada disse, e Pedro, nervoso, ia deixando cair os bolinhos.
Mal sabia ele que tinha sido visto pelo seu novo vizinho a empurrar as notas para dentro da mochila e que, numa tentativa de ficar com o dinheiro, este o tentara atropelar.
Quando foi para casa, contou à mãe que tinha encontrado todas aquelas notas. Ela achou por bem que ele as fosse entregar à polícia, conselho que decidiu seguir. No entanto, ao sair de casa foi visto pelo vizinho a transportar o peluche, que achou a atitude muito estranha para um rapaz daquela idade e por isso decidiu segui-lo.

 
Sem saber que o perseguiam, Pedro ia apressadamente em direção à polícia, para entregar todo aquele dinheiro que estava escondido no peluche. O seu vizinho estava atento a cada passo dele, esperando o momento certo para o surpreender e roubar-lhe o peluche.
Àquela hora da noite, quando seguia por um caminho escuro, Pedro olhou para trás e reparou que estava a ser seguido por alguém. Por isso resolveu correr para chegar mais depressa à polícia e ver-se livre daquele dinheiro. Com a intenção de o roubar, o homem começou também a correr, e conseguiu ultrapassá-lo e bloquear-lhe o caminho. Foi então que, com um ar maléfico, disse:
- Apanhei-te!
 
[Continuação escrita pelo Ricardo]

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Vídeo sobre o «Sermão de Santo António aos Peixes»



Uma lição sobre o «Sermão de Santo António aos Peixes», do Padre António Vieira

Foi pregado este sermão três dias antes de partir para Lisboa, no seu período de apogeu, como político e como orador. É uma peça oratória de primeira classe, quer pela fina ironia, quer pela riqueza e sugestão das alegorias que o seu extraor­dinário poder de observação lhe permitiu criar.

 

4Partindo do conceito predicável «Vós sois o sal da terra», faz o Exórdio, que termina com a Invocação a Maria.

 

4Depois, entra na Exposição ou Informação, onde se anuncia a sua assinalada ironia: «e desta maneira satisfaremos as obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos», diz, dirigindo-se, já, aos peixes. Ao fazer referência às virtudes destes, começa a crítica irónica aos homens convertidos «não em peixes, mas em feras», os homens, que, diz ele em tom de troça, «tinham a razão sem o uso», enquanto os peixes tinham o «uso sem a razão». De todos os animais, os peixes são os únicos que não aceitam a companhia dos homens; e, oportunamente, volta a surgir a crítica irónica: «Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus nos livre!» Por isso, quando Deus destruiu o mundo pelo dilúvio, os peixes não só não desapareceram como até se multiplicaram.

 

4Começa, entretanto, a Confirmação, recorrendo a uma argumentação cerrada.

Numa apóstrofe aos «moradores do Maranhão», Vieira concretiza a intenção do sermão, mas rapidamente retoma a alegoria. E começa pela rémora, peixe que compara com a língua de Santo António. Assim como a rémora, «pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme», assim foi a «virtude e força da língua de António» que teve mão nos soberbos, nos vingativos, nos cobiçosos, nos sensuais, o que sugere alegoricamente por meio de naus que a língua do Santo prendeu.

Vem, depois, o torpedo, um peixe que tem o poder de eletrizar. Que falta faz ele nos pescadores da terra para lhes fazer tremer o braço e arrepiar caminho! A terceira espécie de peixes que serve aos seus intentos de crítica é a dos quatro-olhos. Comenta: «quanto mais necessários seriam nos homens, que a esses peixes, os dois pares de olhos com que foram dotados!»

E termina o elogio dos peixes, realçando a sua importância na prática do jejum e o seu mais fácil acesso aos pobres. Naquele tempo, claro!

 

4A Confirmação continua com a censura à prepotência dos grandes que, como os peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos os quais «engolem» e «devoram». Objetiva, concretamente, esta crítica, à maneira de termocautério, comparando os pequenos com o pão, que é alimento consumido diariamente, enquanto outros alimentos são revezados no seu gasto. O alvo é a crítica aos colonos que, no Brasil, são grandes, mas no Tejo «acham outros maiores que os comam, também, a eles». Volta a objetivar a crítica, referindo o xareo que corre atrás do bagre «como o cão após a lebre e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há de engolir de um bocado».

Outro argumento vem reforçar este convite ao respeito mútuo - a evocação do dilúvio em que os animais «somente dois de cada espécie» se respeitaram uns aos outros para a conservação da espécie. E conclui a sua crítica, dizendo: «Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também, ou fazei a virtude sem necessi­dade e será maior a virtude».

Vai, depois, criticar a vaidade dos homens, mesmo naquelas paragens. O peixe não resiste à isca. Aqueles morrem por uma medalha ou distinção. E, se, no Maranhão, «ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos», há os chupistas, os exploradores que sugam o sangue dos nativos, vendendo-lhes gato por lebre. Os panos que em Portugal não passavam, cobi­çam-nos eles, esfaimados «e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida: todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal».

Depois desta visão de conjunto, vai particularizar a sua crítica. Começa por se concentrar nos roncadores, a imagem dos soberbos, e é S. Pedro o símile suges­tivo que ele apresenta. «Tinha roncado e barbateado Pedro que se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário». E falhou no Horto das Oliveiras, onde se deixou adormecer, e falhou no pretório de Pilatos, onde, por três vezes, negou que conhecia Cristo.

O exemplo do pequeno pastor David que venceu o gigante Golias vem dar força ao argumento «os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo». Não foi o que aconteceu, também, com Pilatos?

A crítica volta-se, em seguida, para os parasitas, objetivados nos pegadores que aprenderam «este modo de vida, mais astuto que generoso... depois que os nossos portugueses o (mar) navegaram, porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores». Os peixes pegadores, sobre os costados dos grandes, vivem descansados, mas, lançando o anzol ao tubarão, com ele morrem todos os pegadores. E é a pessoa de Herodes, qual tubarão, que vem concretizar, agora, o seu pensamento crítico, pois, morto o perseguidor do Menino, pôde José voltar à Pátria.


 

Num rasgo de argumentação, chega a considerar pegadores de Deus, David, Santo António. Mas contrariamente ao que acontece no mundo, Deus «só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele».

E a argumentação prossegue. Que o exemplo da famosa árvore que repre­sentava Nabucodonosor lhes sirva de modelo! «Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles». O homem, afinal, paga também pelo pecado de Adão, como que o tubarão, de que a humanidade é pegadora.

Outra classe de homens vai criticar, agora, nos voadores - a dos ambiciosos, que se deixam arrastar pela presunção e pelo capricho. A eles se refere, quando diz: «Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem». A argumentação é cheia de graciosa ironia - «A natureza deu-te a água, tu não quizeste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo», diz ele, em apóstofe expressiva. E conclui com esta sugestiva metáfora: «Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas».

O símile da ambição dos homens é apresentado em Simão Mago que, querendo fazer-se passar pelo verdadeiro filho de Deus, ao tentar subir ao Céu, foi precipitado na terra, partindo os pés. Desta forma perdeu as asas e os pés, esse homem ambicioso.

Depois de exaltar, uma vez mais, Santo António, diz aos peixes, sempre para atingir os homens: «voadores do mar (não falo com os da terra) imitai o vosso Santo pregador... ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros».

Vai oferecer-nos a última alegoria deste inspirado sermão '- o polvo - símbolo dos hipócritas, dos traidores. «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constan­temente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega que o dito polvo é o maior traidor do mar.»

 

4Neste trecho magnífico, é evidente a propriedade da linguagem, onde todos os elementos se ajustam perfeitamente, a sua tão vasta cultura sacra

e profana, o encadeamento lógico das ideias realçado com os recursos do seu talento de orador:

·         a adjetivação antitética - «hipocrisia tão santa» - e rica;

·         a antítese - «as cores que no camaleão são gala, no polvo são malícia»;

·         o paralelismo anafórico, insistente e incisivo, com o característico alargamento das frases à medida que se aproxima do fim, cortando a monotonia e arrebatando - «Se está nos limos, faz-se verde; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra»;

·         a subjeção, através da anadiplose - «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe ... »;

·         a interrogação retórica - «Fizera mais Judas ?»;

·         a comparação por contraste - «Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende...»;

·         a apóstrofe e a exclamação retórica - «vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!».

 

Ao terminar este sugestivo perfil da traição, comenta, em progressão: «E que neste mesmo elemento (a água sempre clara, diáfana, transparente - como disse) se crie, se conserve e se exercite com dano do bem público um monstro tão dissi­mulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!»

Do polvo, passa às terras de missão onde, também, «há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições». Santo António volta a ser o modelo apontado, pois, nele verão «o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade».

Tem ainda uma palavra a dizer aos que morrem, «com o alheio atravessado na garganta»; e faz, então, referência aos que se aproveitam dos bens dos naufra­gantes» que, por isso, «ficam excomungados e malditos», mergulhando novamente na Sagrada Escritura para colher o caso concretizante: o do peixe que morreu por ter engolido uma moeda.

 

4Vai realizar a Peroração com a «última advertência» aos peixes. Estes foram excluídos do sacrifício consagrado a Deus. Era motivo de desconsolação. Mas tinha de ser assim, porque os peixes não poderiam ir vivos ao sacrifício «e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares». E surge a apóstrofe consoladora e crítica: «Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto».

Antes de terminar o sermão com um magnífico hino de louvor, a remeter-nos para os Cânticos de S. Francisco de Assis, retrata-se a ele próprio, como pecador, em oposição aos peixes, para atingir a humanidade, em geral.

In Lilaz Carriço, Literatura Prática, vol. I, Porto Editora, 1982