4Partindo
do conceito predicável «Vós sois o sal da terra», faz o Exórdio, que termina com a Invocação a
Maria.
4Depois,
entra na Exposição
ou Informação, onde
se anuncia a sua assinalada ironia: «e desta maneira satisfaremos as obrigações
do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de
mortos», diz, dirigindo-se, já, aos peixes. Ao fazer referência às virtudes
destes, começa a crítica irónica aos homens convertidos «não em peixes, mas em
feras», os homens, que, diz ele em tom de troça, «tinham a razão sem o uso»,
enquanto os peixes tinham o «uso sem a razão». De todos os animais, os peixes
são os únicos que não aceitam a companhia dos homens; e, oportunamente, volta a
surgir a crítica irónica: «Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor;
trato e familiaridade com eles, Deus nos livre!» Por isso, quando Deus destruiu
o mundo pelo dilúvio, os peixes não só não desapareceram como até se
multiplicaram.
4Começa,
entretanto, a Confirmação,
recorrendo a uma argumentação cerrada.
Numa apóstrofe aos
«moradores do Maranhão», Vieira concretiza a intenção do sermão, mas
rapidamente retoma a alegoria. E começa pela rémora,
peixe que compara com a língua de Santo António. Assim
como a rémora, «pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme», assim
foi a «virtude e força da língua de António» que teve mão nos soberbos,
nos vingativos, nos
cobiçosos, nos sensuais,
o que sugere alegoricamente por meio de naus que a
língua do Santo prendeu.
Vem, depois, o torpedo, um peixe que
tem o poder de eletrizar. Que falta faz ele nos pescadores da terra para lhes
fazer tremer o braço e arrepiar caminho! A terceira espécie de peixes que serve
aos seus intentos de crítica é a dos quatro-olhos. Comenta: «quanto mais necessários
seriam nos homens, que a esses peixes, os dois pares de olhos com que foram
dotados!»
E termina o elogio
dos peixes, realçando a sua importância na prática do jejum e o seu mais fácil
acesso aos pobres. Naquele tempo, claro!
4A
Confirmação
continua com a censura à prepotência dos grandes que,
como os peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos os quais «engolem» e
«devoram». Objetiva, concretamente, esta crítica, à maneira de termocautério,
comparando os pequenos com o pão, que é alimento consumido diariamente,
enquanto outros alimentos são revezados no seu gasto. O alvo é a crítica aos
colonos que, no Brasil, são grandes, mas no Tejo «acham outros maiores que os
comam, também, a eles». Volta a objetivar a crítica, referindo o xareo que corre
atrás do bagre «como o cão após a lebre e não vê o cego que lhe vem nas costas
o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há de engolir de um bocado».
Outro argumento
vem reforçar este convite ao respeito mútuo - a evocação do dilúvio em que os
animais «somente dois de cada espécie» se respeitaram uns aos outros para a
conservação da espécie. E conclui a sua crítica, dizendo: «Enfim, se eles em
tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram
da necessidade virtude, fazei-o vós
também, ou fazei a virtude sem
necessidade e será maior a
virtude».
Vai, depois,
criticar a vaidade dos homens, mesmo naquelas paragens. O peixe não resiste à
isca.
Aqueles morrem por uma medalha ou distinção. E, se, no Maranhão, «ainda que se
derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos», há os
chupistas, os exploradores que sugam o sangue dos nativos, vendendo-lhes gato
por lebre. Os panos que em Portugal não passavam, cobiçam-nos eles, esfaimados
«e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um para
outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida: todos a trabalhar
toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal».
Depois desta visão
de conjunto, vai particularizar a sua crítica. Começa por se concentrar nos roncadores, a imagem dos
soberbos, e é S. Pedro o símile sugestivo que ele apresenta. «Tinha roncado e
barbateado Pedro que se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até
morrer, se fosse necessário». E falhou no Horto das Oliveiras, onde se deixou
adormecer, e falhou no pretório de Pilatos, onde, por três vezes, negou que
conhecia Cristo.
O exemplo do
pequeno pastor David que venceu o gigante Golias vem dar força ao argumento «os
arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica
debaixo». Não foi o que aconteceu, também, com Pilatos?
A crítica volta-se, em seguida, para os parasitas,
objetivados
nos pegadores que aprenderam «este
modo de vida, mais astuto que generoso... depois que os nossos portugueses o
(mar) navegaram, porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas,
que não vá rodeado de pegadores». Os peixes pegadores, sobre os costados dos
grandes, vivem descansados, mas, lançando o anzol ao tubarão, com ele morrem
todos os pegadores. E é a pessoa de Herodes, qual tubarão, que vem concretizar,
agora, o seu pensamento crítico, pois, morto o perseguidor do Menino, pôde José
voltar à Pátria.
Num rasgo de argumentação, chega a
considerar pegadores de Deus, David, Santo António. Mas contrariamente ao que
acontece no mundo, Deus «só morreu para que não morressem todos os que se pegassem
a ele».
E a argumentação prossegue. Que o exemplo da
famosa árvore que representava Nabucodonosor lhes sirva
de modelo! «Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que
vos mateis por eles, nem morrais com eles». O homem, afinal, paga também pelo
pecado de Adão, como que o tubarão, de que a humanidade é
pegadora.
Outra classe de homens vai criticar, agora,
nos voadores -
a dos
ambiciosos, que se deixam arrastar pela presunção e pelo capricho. A eles se
refere, quando diz: «Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que
tem». A argumentação é cheia de graciosa ironia - «A natureza deu-te a água, tu
não quizeste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo», diz ele, em apóstofe
expressiva. E conclui com esta sugestiva metáfora: «Bem seguro estava ele do
fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta
das ondas, vieram-se-lhe
a queimar as asas».
O símile da ambição dos homens é apresentado
em Simão Mago que, querendo fazer-se passar pelo verdadeiro filho de Deus, ao
tentar subir ao Céu, foi precipitado na terra, partindo os pés. Desta forma perdeu
as asas e os pés, esse homem ambicioso.
Depois de exaltar, uma vez mais, Santo António, diz aos
peixes, sempre para atingir os homens: «voadores do mar (não falo com os da
terra) imitai o vosso Santo pregador... ide-vos meter no fundo em alguma cova;
e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros».
Vai oferecer-nos a última alegoria deste
inspirado sermão '- o polvo
- símbolo
dos hipócritas, dos traidores. «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça,
parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com
aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E
debaixo desta aparência tão modesta ou desta hipocrisia tão santa, testemunham
constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega que o dito polvo
é o maior traidor do mar.»
4Neste trecho
magnífico, é evidente a propriedade da linguagem, onde todos os elementos se
ajustam perfeitamente, a sua tão vasta cultura sacra
e profana, o encadeamento lógico das ideias
realçado com os recursos do seu talento de orador:
·
a
adjetivação antitética - «hipocrisia tão santa» - e rica;
·
a
antítese - «as cores que no camaleão são gala, no polvo são malícia»;
·
o paralelismo anafórico, insistente e incisivo,
com o característico alargamento das frases à medida que se aproxima do fim,
cortando a monotonia e arrebatando - «Se está nos limos, faz-se verde; se está
no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente
costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra»;
·
a
subjeção, através da anadiplose - «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe
... »;
·
a
interrogação retórica - «Fizera mais Judas ?»;
·
a
comparação por contraste - «Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o
polvo é o que abraça e mais o que prende...»;
·
a
apóstrofe e a exclamação retórica - «vê, peixe aleivoso e vil,
qual
é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!».
Ao terminar este sugestivo perfil da
traição, comenta, em progressão: «E que neste mesmo elemento (a água sempre
clara, diáfana, transparente - como disse) se crie, se conserve e se exercite
com dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto,
tão enganoso e tão conhecidamente traidor!»
Do polvo, passa às terras de missão onde,
também, «há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito
maiores e mais perniciosas traições». Santo António volta a ser o modelo
apontado, pois, nele verão «o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e
da verdade».
Tem ainda uma palavra a dizer aos que morrem, «com o
alheio atravessado na garganta»; e faz, então, referência aos que se aproveitam
dos bens dos naufragantes» que, por isso, «ficam excomungados e malditos»,
mergulhando novamente na Sagrada Escritura para colher o caso concretizante: o
do peixe que morreu por ter engolido uma moeda.
4Vai realizar a Peroração com a «última advertência» aos peixes.
Estes foram excluídos do sacrifício consagrado a Deus. Era motivo de
desconsolação. Mas tinha de ser assim, porque os peixes não poderiam ir vivos
ao sacrifício «e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos
seus altares». E surge a apóstrofe consoladora e crítica: «Peixes, dai muitas
graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao
sacrifício, que chegar morto».
Antes de terminar o sermão com um magnífico hino de
louvor, a remeter-nos para os Cânticos de S. Francisco de Assis, retrata-se a
ele próprio, como pecador, em oposição aos peixes, para atingir a humanidade,
em geral.
In Lilaz
Carriço, Literatura Prática, vol. I, Porto Editora, 1982
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