Nasceu,
como Manuel de Meio, em 1608, em Lisboa, este incomparável génio da parenética
sacra portuguesa. Em 1635 é ordenado membro da Companhia de Jesus, no Brasil,
para onde partiu em 1614, na companhia do pai. E a sua grande carreira de
orador e de político começa em Lisboa, em 1642. Fracassaram as duas tentativas
que fez, em Paris, para o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, com a
filha do duque de Orleães, e outros fracassos assinalaram a sua incansável atividade
de diplomata, quer na Holanda, quer, mais tarde, na Itália. E, em 1652, ei-lo,
novamente, no Brasil, a dar-se ao trabalho de missionação. Era necessário
defender os Ameríndios da cupidez e violência dos colonos. Percorre incansavelmente
o Maranhão, o Amazonas, o Pará, a promover essa grande massa de nativos.
Levantam-se hostilidades, é obrigado a vir a Lisboa advogar a causa junto do
Rei. Mas em breve, nos sermões do Brasil, retoma a sua atividade de apóstolo.
Em 1663, já em Coimbra, começa a ser vítima da perseguição do Santo Ofício,
quer com base na obra Esperança de Portugal, de
tendência profética, marcadamente sebastianista, quer acusando-o de simpatizante
da causa judaica. Esteve preso dois anos e a pena que o privava para sempre do
exercício de pregador foi suprimida com a deposição de D. Afonso VI. Entretanto
vai a Roma, onde conquista fama, e regressa a Portugal reabilitado e
engrandecido, partindo definitivamente para o Brasil em 1681, onde morreu, com
perto de 90 anos, em 1697.
A obra
Não
podia estudar-se a obra de Vieira sem um certo conhecimento da ambiência
política em que se moveu, a qual, pelo seu clima de agitação, tão favorável foi
ao seu temperamento nervoso e vivo. Por isso, tanto podemos encontrar nele o
sermão do missionário como o do político, o sermão de crítica literária como o
sermão panegirista, onde mais nos surpreende a elegância da sua prosa incisiva,
penetrante e geometricamente desenhada do que a profundidade do pensamento e
dos juízos.
Vieira
não se apaixona pelo cartesianismo que orienta a oratória de Fénelon e Bossuet
e de que é contemporâneo, mas processa-se norteado pela escolástica medieval em
que se formara.
Por
isso, consegue o orador fugir aos exageros do cultismo, procurando, com um
malabarismo surpreendente de argumentação, desenvolver o «conceito predicável»
que se propunha tratar, segundo a oratória do seu tempo, entre nós, enquanto lá
fora a oratória se processava alheia às explicações sobrenaturais, fora das
alegorias que a Bíblia lhes oferecia e que fora a base da Escolástica.
Combativo,
habilidoso, arrojado, entrincheirado no púlpito, que poder de convicção e de ataque
verbal o seu, movido pela certeza de que apresentava uma causa justa, ou
defendia uma posição injustamente julgada!
Apreciemos
dois dos seus muitos sermões - aproximadamente duzentos - e procuremos neles
desenvolver alguns aspetos mais característicos da sua realização literária no
género.
SUMÁRIO: As qualidades estilísticas da oratória do Padre António Vieira
exemplificadas através da sua obra.
A
prosa do Padre António Vieira oferece, em geral, larga exemplificação para os
processos que caracterizam a linguagem.
A
excelência da sua obra resulta, principalmente, da elegância da sua prosa, da
sua facilidade de expressão. Apreciemos, pois, alguns dos seus atributos e
alguns dos processos que contribuíram para o seu enriquecimento.
Características do seu estilo
-
concisão
- «É a luz mais benigna que o Sol;
porque o Sol alumia, mas abrasa; a luz alumia, e não ofende.»
«A
maior pensão com que Deus criou o homem é o comer. Lançai os olhos por todo o
mundo, e vereis que todo ele se vem a resolver em buscar o pão para a boca.»
«Também
esses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras; comeu o
tempo as pedras; também as pedras morrem.»
-
clareza -
«Que é uma barca senão uma república pequena? E que é
uma monarquia, senão uma barca grande?»
-
unidade -
«É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas,
do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta...»
É
esta uma qualidade evidente em qualquer definição que
o orador apresente.
Observe-se,
ainda, o belíssimo trecho em que define a alma. «Quereis
ver o que é uma alma? Olhai (diz Santo Agostinho) para um corpo sem alma. Se
aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências?... Se o corpo é de um
artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores?... A
alma. Se o corpo morto é
de um soldado... o valor... a constância... o levar na lâmina de uma espada a vida
própria e a morte alheia: quem fazia tudo isto? A alma».
E desta forma confirma a excelência da alma e a define,
referindo-se ainda aos príncipes, aos santos e, até, à formosura.
-
ritmo -
«Mude a victória as insígnias, desafrontem-se
as cruzes católicas, triunfem as
vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada
e desenganada a perfídia que só a Fé romana, que professamos, é Fé, e só ela a
verdadeira e a vossa.» - Note-se o arrebatamento das primeiras frases, curtas,
rápidas, comandadas pelo verbo, lançadas à maneira
de um imperativo e o espraiar com que o mesmo período termina a lembrar a
vertigem das ondas, a caminho da praia e o seu refluir largo e silencioso.
-
harmonia
- «As primeiras criaturas que com as
vozes nos envergonham, entre aquelas que o mesmo Senhor criou, mas não remiu,
são as aves. Que avesinha há ou tão pintada como o pintassilgo, ou tão mal
vestida como rouxinol, que não rompa o silêncio da noite com dar ou cantar as
graças ao seu Criador, festejando a boa-vinda da primeira Cruz ou chamando por
ela?»
-
propriedade,
precisão,
vernaculidade
- Como ele próprio refere, a propósito
da classe de peixes - os Pegadores. E, ainda: «Arranca o estatuário uma pedra
dessas montanhas, tosca, bruta, rude, informe...»
ou: «importa que daqui por diante sejais mais repúblicas
e zelosos do bem comum».
-
originalidade
e variedade
- «Que coisa é o oiro e a prata, senão
uma terra de melhor cor 1 E que coisa são as pérolas e os diamantes, senão uns
vidros mais duros? Que coisa são as galas, senão um engano de muitas cores? ...
Que coisa é a formosura senão uma caveira com volante por cima? Tirou a morte
aquele véu, e fugis hoje do que ontem adoráveis...»
-
sublimidade
- «Oh Deus! Oh Deus! Quantas graças
devemos à fé que nos destes,
porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à
vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, a vossa
justiça e providência! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma
Eva? Estas almas não foram resgatadas com sangue do mesmo Cristo? Estes corpos
não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o
mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina,
tão triste, tão inimiga, tão cruel»
Observemos,
agora, alguns processos estilísticos dos muitos que enriquecem sua obra.
-
hipérbato
- «Fazer pouco fruto, pode proceder de
um de três princípios.»
-
anacoluto
- «Santo António... abriu-lhe
Deus um dia os olhos...»
-
pleonasmo
- «Que coisa é a conversão de uma alma
senão entrar um homem dentro
em si e ver-se a si mesmo.»
-
anáfora -
«o pregador concorre com o espelho, que é a doutrina;
Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o
conhecimento.»
-
elipse -
«Peixes! quanto mais longe dos homens, tanto melhor...»
-
zeugma -
«Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a
quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como
os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como
as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o
semeador? Nenhuma.»
-
interrogação
- «Parece-vos muito que a voz de uma
trombeta haja de achar obediência nos mortos? Ora reparai, em outro milagre
maior...»; «Finalmente, que coisa é a mesma vida, senão uma lâmpada acesa -
vidro e fogo?»
-
exclamação
- «Oh trato desumano em que a mercancia
é o homem! Oh mercancia diabólica em que os interesses se tiram das almas
alheias, e os riscos são das próprias!»
-
apóstrofe
- «Pois isto se há de sofrer, Deus
meu? quando quizestes entregar vossas ovelhas a 5.
Pedro, examinaste-lo três vezes se vos amava. E agora as entregais desta
maneira, não a pastores, senão a lobos?» - «Cesse, cesse já, irmãos peixes,
e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia.»
-
antítese
- «Os senhores poucos, os escravos
muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores
banqueteando-se, os escravos perecendo à fome;
os se hores nadando em oiro e prata, os escravos carregados de ferros...»
-
ironia -
«É possível que os peixes ajudem
à salvação dos homens,
e os homens lancem
ao mar os ministros da salvação.»
Esta frase exemplifica, ao mesmo tempo, o quiasmo
ou trocadilho cruzado.
-
gradação crescente
- «É a guerra aquele monstro... aquela
tempestade... aquela calamidade...»
-
comparação
- «Corações embaraçados como espinhos,
corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança.» É
a comparação por semelhança. Mas no texto em
que fala no trabalho do fundidor que, usando a mesma
substância - o metal - fazendo-o sair pela mesma boca, apenas entrando por
ouvidos diferentes, fabrica, por um lado, S. Bartolomeu, por outro o diabo aos
seus pés, faz comparação por contraste.
-
metáfora
- é a síncope da comparação. «O trigo que semeou
o pregador evangélico, diz Cristo que é a
palavra de Deus. Os espinhos, o caminho e
a terra boa, em que o trigo cai, são os diversos corações dos
homens...» «As palavras
brandas do adulador são redes que ele arma para
tomar nelas o adulado.»
-
alegoria
- Todo o Sermão de Santo António aos Peixes se
desenvolve através de alegorias - os pega dores são os parasitas
... , o polvo é a imagem do traidor.
-
prosopopeia
- «Bem mal cuidava o marfim na sua fortuna, quando se
via endurecer nos dentes dos elefantes ... »
-
metonímia
- Referimos, em especial, a antonomásia que
António Vieira usou intensamente no Sermão da Sexagésima, como indicámos.
-
sinédoque
- «Uma só árvore lhe dá o vestido.»
Realce-se
ainda:
-
pinturesco
- «As flores que anoiteceram secas e murchas porque
carecem de vozes, também declaram os seus afetos com lágrimas, posto que lhes
não falte a melodia para louvar a quem as fez tão formosas» (refira-se,
oportunamente, a animização). «As nuvens bordadas de encarnado e ouro,
os mares com as ondas crespas em azul e prata, as árvores com as folhas voltadas
ao céu, e com a variedade do seu verde natural então mais vivo...»
-
o realismo - A descrição de estratégia das tartarugas, na carta
ao Provincial.
-
invenção - Como vimos, é prodigioso o poder
inventivo de Vieira quando
ajusta
os passos da Escritura para argumentar os fins a que visam as suas palavras.
-
definição
- «É a guerra aquele monstro ... » Pode fazê-lo pela
imagem metafísica, como aqui, ou pela etimologia, que é o caso da calamidade
com a origem em cálamo - a cana de que se faziam todas as penas, fonte de
todas as calamidades -, ou pelo raciocínio filosófico.
-
análise -
O belo trecho em que Vieira define a alma, enumerando as várias manifestações e
atributos do sábio, do artífice, do soldado, do príncipe, do santo, do pecador
e da beleza para concluir que tudo isso que desapareceu, quando o corpo deixou
de viver, nada mais era do que a alma.
No
Sermão de Santo António aos Peixes usa Vieira do método dedutivo, descendo
do geral para o particular, como ele próprio propõe.
Quando
fala da conversão de Inácio de Loiola apresenta a causa logo seguida do efeito.
Abundam
também nas suas peças oratórias os exemplos com que argumenta os seus
juízos.
Outros
processos poderíamos ainda registar, como o jogo etimológico, os trocadilhos,
a exclamação enfático. Mas ficamos por aqui.
In Lilaz
Carriço, Literatura Prática 11
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