segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Padre António Vieira e o «Sermão de Santo António aos Peixes»

SUMÁRIO: O Padre António Vieira. Dados essenciais da sua biografia. O orador e o Sermão de Santo António aos peixes. Comentário ideológico, estilístico e estrutural.

Nasceu, como Manuel de Meio, em 1608, em Lisboa, este incomparável génio da parenética sacra portuguesa. Em 1635 é ordenado membro da Companhia de Jesus, no Brasil, para onde partiu em 1614, na companhia do pai. E a sua grande carreira de orador e de político começa em Lisboa, em 1642. Fracassaram as duas tentativas que fez, em Paris, para o casamento de D. Teodósio, filho de D. João IV, com a filha do duque de Orleães, e outros fracassos assinalaram a sua incansável atividade de diplomata, quer na Holanda, quer, mais tarde, na Itália. E, em 1652, ei-lo, novamente, no Brasil, a dar-se ao trabalho de missionação. Era necessário defender os Ameríndios da cupidez e violência dos colonos. Percorre incansavel­mente o Maranhão, o Amazonas, o Pará, a promover essa grande massa de nativos. Levantam-se hostilidades, é obrigado a vir a Lisboa advogar a causa junto do Rei. Mas em breve, nos sermões do Brasil, retoma a sua atividade de apóstolo. Em 1663, já em Coimbra, começa a ser vítima da perseguição do Santo Ofício, quer com base na obra Esperança de Portugal, de tendência profética, marcadamente sebastianista, quer acusando-o de simpatizante da causa judaica. Esteve preso dois anos e a pena que o privava para sempre do exercício de pregador foi suprimida com a deposição de D. Afonso VI. Entretanto vai a Roma, onde conquista fama, e regressa a Portugal reabilitado e engrandecido, partindo definitivamente para o Brasil em 1681, onde morreu, com perto de 90 anos, em 1697.

A obra

Não podia estudar-se a obra de Vieira sem um certo conhecimento da ambiência política em que se moveu, a qual, pelo seu clima de agitação, tão favorável foi ao seu temperamento nervoso e vivo. Por isso, tanto podemos encontrar nele o sermão do missionário como o do político, o sermão de crítica literária como o sermão panegirista, onde mais nos surpreende a elegância da sua prosa incisiva, penetrante e geometricamente desenhada do que a profundidade do pensamento e dos juízos.

Vieira não se apaixona pelo cartesianismo que orienta a oratória de Fénelon e Bossuet e de que é contemporâneo, mas processa-se norteado pela escolástica medieval em que se formara.

Por isso, consegue o orador fugir aos exageros do cultismo, procurando, com um malabarismo surpreendente de argumentação, desenvolver o «conceito predicável» que se propunha tratar, segundo a oratória do seu tempo, entre nós, enquanto lá fora a oratória se processava alheia às explicações sobrenaturais, fora das alegorias que a Bíblia lhes oferecia e que fora a base da Escolástica.

Combativo, habilidoso, arrojado, entrincheirado no púlpito, que poder de convicção e de ataque verbal o seu, movido pela certeza de que apresentava uma causa justa, ou defendia uma posição injustamente julgada!

Apreciemos dois dos seus muitos sermões - aproximadamente duzentos - e procuremos neles desenvolver alguns aspetos mais característicos da sua realização literária no género.

 
SUMÁRIO: As qualidades estilísticas da oratória do Padre António Vieira exemplificadas através da sua obra.

A prosa do Padre António Vieira oferece, em geral, larga exemplifi­cação para os processos que caracterizam a linguagem.

A excelência da sua obra resulta, principalmente, da elegância da sua prosa, da sua facilidade de expressão. Apreciemos, pois, alguns dos seus atributos e alguns dos processos que contribuíram para o seu enriquecimento.
 
Características do seu estilo

- concisão - «É a luz mais benigna que o Sol; porque o Sol alumia, mas abrasa; a luz alumia, e não ofende.»

«A maior pensão com que Deus criou o homem é o comer. Lançai os olhos por todo o mundo, e vereis que todo ele se vem a resolver em buscar o pão para a boca.»

«Também esses versos que se liam então, já os não há: apagaram-se as letras; comeu o tempo as pedras; também as pedras morrem.»

- clareza - «Que é uma barca senão uma república pequena? E que é uma monarquia, senão uma barca grande?»

- unidade - «É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta...»

É esta uma qualidade evidente em qualquer definição que o orador apresente.

Observe-se, ainda, o belíssimo trecho em que define a alma. «Quereis ver o que é uma alma? Olhai (diz Santo Agostinho) para um corpo sem alma. Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências?... Se o corpo é de um artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores?... A alma. Se o corpo morto é de um soldado... o valor... a constância... o levar na lâmina de uma espada a vida própria e a morte alheia: quem fazia tudo isto? A alma». E desta forma confirma a exce­lência da alma e a define, referindo-se ainda aos príncipes, aos santos e, até, à formosura.

- ritmo - «Mude a victória as insígnias, desafrontem-se as cruzes católicas, triunfem as vossas chagas nas nossas bandeiras, e conheça humilhada e desenganada a perfídia que só a Fé romana, que professamos, é Fé, e só ela a verdadeira e a vossa.» - Note-se o arrebatamento das primeiras frases, curtas, rápidas, comandadas pelo verbo, lançadas à maneira de um imperativo e o espraiar com que o mesmo período termina a lembrar a vertigem das ondas, a caminho da praia e o seu refluir largo e silencioso.

- harmonia - «As primeiras criaturas que com as vozes nos envergonham, entre aquelas que o mesmo Senhor criou, mas não remiu, são as aves. Que avesinha há ou tão pintada como o pintassilgo, ou tão mal vestida como rouxinol, que não rompa o silêncio da noite com dar ou cantar as graças ao seu Criador, festejando a boa-vinda da primeira Cruz ou cha­mando por ela?»

- propriedade, precisão, vernaculidade - Como ele próprio refere, a propó­sito da classe de peixes - os Pegadores. E, ainda: «Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, rude, informe...» ou: «importa que daqui por diante sejais mais repúblicas e zelosos do bem comum».

- originalidade e variedade - «Que coisa é o oiro e a prata, senão uma terra de melhor cor 1 E que coisa são as pérolas e os diamantes, senão uns vidros mais duros? Que coisa são as galas, senão um engano de muitas cores? ... Que coisa é a formosura senão uma caveira com volante por cima? Tirou a morte aquele véu, e fugis hoje do que ontem adoráveis...»

- sublimidade - «Oh Deus! Oh Deus! Quantas graças devemos à fé que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, a vossa justiça e providência! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel»

Observemos, agora, alguns processos estilísticos dos muitos que enriquecem sua obra.

- hipérbato - «Fazer pouco fruto, pode proceder de um de três princípios.»

- anacoluto - «Santo António... abriu-lhe Deus um dia os olhos...»

- pleonasmo - «Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo.»

- anáfora - «o pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento.»

- elipse - «Peixes! quanto mais longe dos homens, tanto melhor...»

- zeugma - «Todas as criaturas quantas há no mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma.»

- interrogação - «Parece-vos muito que a voz de uma trombeta haja de achar obediência nos mortos? Ora reparai, em outro milagre maior...»; «Final­mente, que coisa é a mesma vida, senão uma lâmpada acesa - vidro e fogo?»

- exclamação - «Oh trato desumano em que a mercancia é o homem! Oh mercancia diabólica em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos são das próprias!»

- apóstrofe - «Pois isto se há de sofrer, Deus meu? quando quizestes entregar vossas ovelhas a 5. Pedro, examinaste-lo três vezes se vos amava. E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão a lobos?» - «Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia.»

- antítese - «Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando-se, os escravos perecendo à fome; os se hores nadando em oiro e prata, os escravos carre­gados de ferros...»

- ironia - «É possível que os peixes ajudem à salvação dos homens, e os homens lancem ao mar os ministros da salvação.» Esta frase exemplifica, ao mesmo tempo, o quiasmo ou trocadilho cruzado.

- gradação crescente - «É a guerra aquele monstro... aquela tempestade... aquela calamidade...»

- comparação - «Corações embaraçados como espinhos, corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança.» É a com­paração por semelhança. Mas no texto em que fala no trabalho do fundidor que, usando a mesma substância - o metal - fazendo-o sair pela mesma boca, apenas entrando por ouvidos diferentes, fabrica, por um lado, S. Bar­tolomeu, por outro o diabo aos seus pés, faz comparação por contraste.

- metáfora - é a síncope da comparação. «O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, o caminho e a terra boa, em que o trigo cai, são os diversos corações dos homens...» «As palavras brandas do adulador são redes que ele arma para tomar nelas o adulado.»

- alegoria - Todo o Sermão de Santo António aos Peixes se desenvolve através de alegorias - os pega dores são os parasitas ... , o polvo é a imagem do traidor.

- prosopopeia - «Bem mal cuidava o marfim na sua fortuna, quando se via endurecer nos dentes dos elefantes ... »

- metonímia - Referimos, em especial, a antonomásia que António Vieira usou intensamente no Sermão da Sexagésima, como indicámos.

- sinédoque - «Uma só árvore lhe dá o vestido.»

Realce-se ainda:

- pinturesco - «As flores que anoiteceram secas e murchas porque carecem de vozes, também declaram os seus afetos com lágrimas, posto que lhes não falte a melodia para louvar a quem as fez tão formosas» (refira-se, oportunamente, a animização). «As nuvens bordadas de encarnado e ouro, os mares com as ondas crespas em azul e prata, as árvores com as folhas voltadas ao céu, e com a variedade do seu verde natural então mais vivo...»

- o realismo - A descrição de estratégia das tartarugas, na carta ao Provincial.

- invenção - Como vimos, é prodigioso o poder inventivo de Vieira quando

ajusta os passos da Escritura para argumentar os fins a que visam as suas palavras.

- definição - «É a guerra aquele monstro ... » Pode fazê-lo pela imagem metafísica, como aqui, ou pela etimologia, que é o caso da calamidade com a origem em cálamo - a cana de que se faziam todas as penas, fonte de todas as calamidades -, ou pelo raciocínio filosófico.

- análise - O belo trecho em que Vieira define a alma, enumerando as várias manifestações e atributos do sábio, do artífice, do soldado, do príncipe, do santo, do pecador e da beleza para concluir que tudo isso que desapa­receu, quando o corpo deixou de viver, nada mais era do que a alma.

No Sermão de Santo António aos Peixes usa Vieira do método dedutivo, descendo do geral para o particular, como ele próprio propõe.

Quando fala da conversão de Inácio de Loiola apresenta a causa logo seguida do efeito.

Abundam também nas suas peças oratórias os exemplos com que argumenta os seus juízos.

Outros processos poderíamos ainda registar, como o jogo etimológico, os trocadilhos, a exclamação enfático. Mas ficamos por aqui.

 
In Lilaz Carriço, Literatura Prática 11

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