quarta-feira, 14 de maio de 2014

Cesário Verde: a sua vida e a sua poesia


CESÁRIO VERDE (Poeta: 1855 – 1886)

QUANDO TUDO ACONTECEU...

 

1855: A 23 de fevereiro, num prédio da Rua da Padaria (junto à Sé de Lisboa), nasce José Joaquim CESÁRIO VERDE, filho de Maria da Piedade dos Santos Verde e de José Anastácio Verde.

1857: Peste em Lisboa; a família Verde refugia-se na sua quinta de Linda-a-Pastora.

1865: Os Verde passam a morar na Rua do Salitre (Lisboa). Cesário conclui a instrução primária e começa a estudar inglês e francês.

1872: Cesário começa a trabalhar na loja de ferragens do pai, na Rua dos Fanqueiros. Com 19 anos, tuberculosa, morre Maria Júlia, irmã de Cesário.

1873: Cesário matricula-se no Curso Superior de Letras, onde conhece e se torna grande amigo do escritor Silva Pinto. Publica os seus primeiros poemas no Diário de Notícias.

1874: Publica mais poemas no Diário de Notícias (Lisboa) e nos jornais do Porto Diário da Tarde e A Tribuna. Ramalho Ortigão crava-lhe uma Farpa a propósito do poema Esplêndida. Boémia revolucionária no “Martinho”.

1875: Cesário conhece e faz amizade com Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz). Continua a publicar poemas no Mosaico (Coimbra), n’A Tribuna e n’O Porto. Começa a dirigir a loja da Rua dos Fanqueiros e a quinta de Linda-a-Pastora.

1876: Desenvolve negócios. Frequenta a casa de Papança, na Travessa da Assunção, onde se cruza com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Os Verde mudam-se para a Rua das Trinas.

1877: Volta a colaborar no Diário de Notícias. Queixa-se dos primeiros sintomas de tuberculose.

1878: Passa a viver em Linda-a-Pastora. Nos jornais publica Noitada, Manhãs Brumosas, Em Petiz.

1879: Publica Cristalizações no primeiro número da Revista de Coimbra. É atacado pela republicana Angelina Vidal n’A Tribuna do Povo e pelo monárquico Diário Ilustrado.

1880: Publica O Sentimento dum Ocidental no número do Jornal de Viagens (Porto) dedicado ao tricentenário de Camões. Os Verde exportam maçãs para Inglaterra, Alemanha e Brasil.

1881: Cesário participa no “Grupo do Leão” e convive com Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Fialho de Almeida, Gualdino Gomes e com os pintores José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro.

1882:  Morre, tuberculoso, Joaquim Tomás, irmão de Cesário.

1883: Cesário viaja para França, numa tentativa malograda de exportar vinhos portugueses.

1884: Publica Nós. Deixa de frequentar os meios literários. Ativa negócios, produz, compra e exporta frutas. Recolhe-se a Linda-a-Pastora.

1885: Agrava-se o seu estado de saúde mas regressa a Lisboa e continua a trabalhar na loja da Rua dos Fanqueiros.

1886: Extremamente doente, instala-se em Caneças. Vai depois para casa de um amigo, no Lumiar (às portas de Lisboa), onde vem a morrer a 19 de julho.

1887: Silva Pinto edita O Livro de Cesário Verde.

 

PESTE

José Anastácio Verde tem uma loja de ferragens na Rua dos Fanqueiros, em Lisboa. É um comerciante bem sucedido e dono ainda de uma quinta em Linda-a-Pastora (a uns quinze quilómetros da capital). Em 1852 casa com Maria da Piedade dos Santos. O casal vai morar num andar de um prédio na Rua da Padaria, próximo da velha Sé de Lisboa. Em 1853 nasce-lhes Maria Julia, a primogénita. Em 1855 o segundo filho, José Joaquim CESÁRIO. E no ano seguinte, Adelaide Eugénia, menina que morrerá com 3 anos. Em 1858, Joaquim Tomás, o quarto filho. E em 1862, Jorge, o quinto e último filho.

Próximo da Rua da Padaria há um arco escuro onde se acumulam excrementos e cabeças de peixe. A Baixa de Lisboa é toda assim, não lhe faltam focos de infeção em becos e vielas. No verão de 1857 irrompe a febre amarela, peste a ceifar a vida dos lisboetas. Os Verde abandonam a capital, refugiam-se em Linda-a-Pastora. Cesário evocará a fuga:

(...)
Foi quando em dois verãos, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade. 

Ora meu pai, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tantos nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.
(...)

Sem canalizações, em muitos burgos ermos,
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
e noite, amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d’inferno outros arruamentos.
(...)

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

 

MARIA JÚLIA

Aos 10 anos Cesário conclui a instrução primária e começa a estudar francês e inglês, prepara-se para ser o correspondente comercial da firma do pai.


Entretanto os Verde tinham-se mudado para um prédio da Rua do Salitre. Os ares, por ali, são mais saudáveis do que os da Rua da Padaria ou da Rua dos Fanqueiros (onde a família também chegara a morar). O que não evita que Maria Júlia, aos 19 anos (1872), morra tuberculosa. Cesário irá recordá-la, sempre:


(...)
Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma ténue e imaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rústica, aldeã.

E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!  

Ai daqueles que nascem neste caos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E - custa a crer - deixam viver os maus!
(...)

E que fazer se a geração decai!
Se a seiva genealógica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai! 

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua ausência! Ah! Como o ar nos falta,
Ó flor cortada, suscetível, alta,
Que assim secaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De refletir no túmulo! E medito
No eterno Incognoscível infinito,
Que as ideias não podem abranger!
(...)

 

UM POEMA E UMA FARPA

O desprazer de refletir no túmulo... Estar ocioso é estar doente, trabalhar é ter saúde! Aos 17 anos Cesário arregaça as mangas na loja da Rua dos Fanqueiros: escreve cartas para o estrangeiro, lança débitos e créditos, calcula a conversão das moedas, recebe caixeiros viajantes, compra e vende, pesa pregos e parafusos, monta e oleia fechaduras, experimenta ferramentas, atende valadores, calafates e marceneiros, ao balcão ouve, entende e vive as aflições do povo miúdo que labuta para ganhar a vida, muitas vezes a sobrevida.

Consome intensamente o dia. Nos fins de tarde, e à noite, gosta de ler, escreve poemas. Mas detesta abstrações, acha que o pensamento é o patamar superior dos sentidos, tangem-no excitados, sacudidos, o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato. Acha que um poema deve ser um cristal, superfícies várias, cada verso a refletir uma das faces do real.

Para escândalo do pai (literatos são ociosos...), em 1873 Cesário matricula-se no Curso Superior de Letras (como se elas lá estivessem...). Temor infundado, o de José Anastácio: Cesário é alérgico à retórica, à literatice impingida e, poucos meses depois da matrícula, arma umas discussões e abandona o Curso.

Cesário tem o furor da discussão, diz sempre o que pensa e bate-se por aquilo que acha certo, incansavelmente, não concilia. Mas quando reconhece que está errado, não hesita em dar o braço a torcer, com frontalidade. Esta sua postura irá atrair antipatias em vários meios, principalmente nos literários.

Consome intensamente o dia. Nos fins de tarde, e à noite, gosta de ler, escreve poemas. Mas detesta abstrações, acha que o pensamento é o patamar superior dos sentidos, tangem-no excitados, sacudidos, o tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato. Acha que um poema deve ser um cristal, superfícies várias, cada verso a refletir uma das faces do real.

Da sua passagem pelo ateneu sobra-lhe apenas a amizade de Silva Pinto, candidato a escritor, cujo pai, um industrial, o expulsara de casa porque ousara liderar uma greve dos seus operários... Silva Pinto tem um ódio febril aos burgueses, é um republicano, é um socialista inflamado pela Comuna de Paris. Tudo nele é paixão, vê tudo a preto e branco, alto contraste, ou explorador ou explorado, ou isto ou aquilo, ou sim ou não. Começa por ter um desprezo radical por Cesário, esse aprendiz de comerciante, esse burguesinho metido a escritor... Mas ao ler os seus poemas converte-se no seu mais fervoroso admirador, no amigo para toda a vida. Cesário ampara-lhe os desequilíbrios, sensibiliza-o aquele amor alucinado aos oprimidos.

- Como tu tens tempo, meu amigo, para sofrer tanto!

E Silva Pinto responde-lhe:

- Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar no sofrimento!

Eduardo Coelho é o diretor do Diário de Notícias. Em tempos idos fora caixeiro na loja de José Anastácio Verde e continua a respeitar o antigo patrão. É quanto basta para Cesário conseguir publicar no jornal os seus primeiros poemas. Um deles, Esplêndida, escrito ao jeito de João Penha (Vinho e Fel), paródia antirromântica, merece a Farpa n.º 22  de Ramalho Ortigão:

“(...) Averigua-se que o realismo baudelaireano está fazendo mais numerosas e mais lamentáveis vítimas do que o velho romantismo de Byron, de Lamartine e de Musset. (...) Tal é a deplorável influência (...) na poesia moderna representada na obra de um dos seus cultores, o snr. Cesário Verde, ao qual sinceramente desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a ilustrar o seu nome, tornando-se cada vez menos Verde e mais Cesário.”

Uma farpa desperta instantaneamente a braveza de um touro. Esta Farpa irá certamente despertar o realismo instantâneo de Cesário.

 

BOÉMIA

Silva Pinto arrasta o poeta para a boémia revolucionária no “Martinho” das mesas espelhentas. Alto, magro, louro, ativo, sensual, Cesário tem boa figura, seduzem-no e seduz mulheres, mas as que mais o fascinam são atrizes, a Luísa Cândida - do “Condes” - , a Palmira de Souza - do “Variedades” -, e ainda a Tomásia Veloso, com quem, ao que parece, terá um romance. Fialho de Almeida irá descrevê-lo. Assim:

“O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada, de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinham a expressão profunda, retilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões.”

E aí vem uma atriz, talvez a Tomásia, a saltitar por entre as obras de uma rua:

(...)
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como lajões. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!  

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na, sanguínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa
Com os seus pezinhos rápidos, de cabra!

 

BAUDELAIRE...?

O realismo baudelaireano... Sim, alguma coisa Cesário tomou de Baudelaire. Mas enquanto o francês fez da realidade um trampolim para alcançar os paraísos artificiais, o português vai bolinando por entre todas as coordenadas do real. A sua vida de comerciante e agricultor será a sua poesia. Até quando recorda Maria Júlia, observa:      

(...)
À procura da
libra e do shiling
Eu andava abstrato e sem que visse

Que o teu alvor romântico de
miss
Te obrigava a morrer antes de mim.
(...)  

Até quando passeia no campo, com uma prima, não se esquece de apontar:

(...)
Numa colina azul brilha um lugar caiado.
Belo! E arrimado ao cabo da sombrinha,
Com teu chapéu de palha, desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.
(...)

Ao escrever a Silva Pinto, então a morar no Porto, Cesário define, define-se: "A mim o que me rodeia é o que me preocupa.”

Baudelaire ficou longe...

 

CONTROVERSAS E UM DUELO MALOGRADO

Cesário continua a publicar poemas no Diário de Notícias, no Diário da Tarde e n’A Tribuna (ambos do Porto) no Mosaico e n’A Evolução (estes de Coimbra). O seu implícito republicanismo provoca um violento ataque do monárquico Diário Ilustrado. Cesário responde em verso:

(...)
Na praça, de manhã, havia, ó rei brutal!
Montões de sordidez horrível e avinhada...
- Nascera o
Ilustrado - um vómito real!

Contudo, a inexistência de retórica nos seus versos, leva um tal Juvenal Pigmeu a publicar n’A Tribuna do Povo um artigo insultuoso. Cesário desafia-o para um duelo e o ridículo vem à tona: Juvenal Pigmeu é pseudónimo de Angelina Vidal, pedagoga e ativista republicana... 

Atacado por monárquicos e republicanos, pela sua singularidade, Cesário está plantado para além do tempo que lhe cabe viver agora... Escreve ao seu amigo Bettencourt Rodrigues, estudante de Medicina em Paris: está farto, tem vontade de sair de Portugal, foco de mandriice e de asneiras...

 

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

O Hotel Pelicano fica na Rua dos Fanqueiros, perto da loja dos Verde. A vizinhança e o gosto pelas letras promovem a amizade entre o hóspede António de Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz) e Cesário. Entretanto este vai tomando a direção da loja e da quinta, desenvolve negócios, exporta maçãs para a Inglaterra, a Alemanha e o Brasil, escreve versos.

Mais tarde, na sua casa da Travessa da Assunção, Papança promoverá saraus literários onde Cesário se cruza com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Nenhum prestará atenção aos seus poemas, onde já se viu um comerciante a poetar? Ainda por cima opinativo, conflituoso...

1880, comemorações do tricentenário da morte de Camões! O Jornal de Viagens, do Porto, lança um número especial: Portugal a Camões. Nele, entre inéditos de autores vários, vem publicado O Sentimento dum Ocidental, poema de Cesário em quatro cantos:  I - Ave-Marias, II - Noite fechada, III - Ao gás, IV - Horas mortas.

(...)
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,

Toldam-se de uma cor monótona, londrina.

(...)
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

(...)
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”.

(...)
A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos,
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

(...)
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!

(...)
E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando, sobre as pedras da calçada.  

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!
 

Andam todos distraídos, ninguém repara neste caudal. Só decénios depois, muitos, Fernando Pessoa (um simples empregado de escritório, um bêbado, um doido que julga ser poeta) é que irá induzir o seu heterónimo Álvaro de Campos a bradar: 

- Ó Cesário Verde, ó Mestre!

 

O GRUPO DO LEÃO

Em 1881 começam as reuniões do Grupo do Leão (referência ao restaurante “Leão de Ouro”). Literatos muitos: Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Mariano Pina, Fialho de Almeida, D. João da Câmara, Gualdino Gomes e Cesário, entre outros. Também pintores, tais como José Malhoa, Silva Porto e os irmãos Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro. Fialho mostra-se insatisfeito com o naturalismo na pintura, afirma que a arte não deve ser uma cópia da natureza, antes a “expressão roaz do pensamento”. Cesário apoia Fialho, com veemência. Mas os pintores discordam, estão ancorados no imutável céu azul, nas vaquinhas malhadas por entre os prados verdes, nas messes loiras, nos rebanhos ao entardecer, nos muros cobertos de musgo, nas pontes sobre os riachos, nos moinhos lá no alto das colinas...

Mais tarde, ao pintar o Grupo do Leão, Columbano irá esquecer-se de colocar Fialho e Cesário entre os convivas. Esquecimento? Talvez não seja...

E se alguém já sabe (e talvez Alberto de Oliveira saiba) das exposições impressionistas de Paris (a primeira ocorreu em 1874), cala-se! Do Grupo do Leão é um não-pintor, é Cesário quem antecipa o impressionismo em Portugal. O seu poema De Tarde é como tela de Renoir:

Naquele “pic-nic” de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, indo o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

 

SE EU NÃO MORRESSE, NUNCA

Mas afinal o anticlericalismo sempre está na poesia de Cesário:

(...)
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero;
(...)

Também ali está a sátira ao militarismo de opereta:

(...)
De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar de barretina
E galões marciais de pechisbeque.
(...)  

Ali está a simpatia pelas classes oprimidas:

(...)
Povo! No pano ora rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas.
Listrões de vinho lançam-lhe divisas
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!
(...)

Ali está o seu enlevo pelos frutos a vindimar:

(...)
Ó pobre estrume, como tu compões
Esses pâmpanos doces como afagos!
“Dedos de dama”: transparentes bagos!
“Tetas de cabra”: lácteas carnações!
(...)  

Mas também está o que a indolência das meninges não deixa perceber, a alucinada justaposição de dois instantes do real, abrangência:

(...)
E nesse mês, que não consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.
(...)  

Ali estão os aparelhos para descobrir e assinalar a realidade:

(...)
Eu tudo encontro alegremente exato,
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos

E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato.
(...)
 

Ali está um advérbio a subverter o corriqueiro:

(...)
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.
(...) 

Também um adjetivo a perturbar:

E os olhos de um caleche espantam-me sangrentos.

Ali estão os pequenos prazeres quotidianos:

Cheiro salutar e honesto ao pão no forno.

Ali estão enjauladas as crianças da capital:

Os querubins do lar flutuam nas varandas.

Ali está um pormenor a ressoar durante a noite, cidade deserta:

Um parafuso cai nas lajes, às escuras.

Ali está a súbita associação de vegetais com as formas femininas:

(...)
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d’alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
(...)  

Ali estão as trabalhadoras, as genuínas, não as que a Angelina pespegava em panfletos:

(...)
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
(...)

Ali está a sua mágoa, arredar o real o poeta não consegue:

(...)
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
(...)

Contudo, está ali também a sua esperança, embora vã:

(...)
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas...
(...)

 

RIQUEZAS QUÍMICAS NO SANGUE...

Em 1876 os Verde fogem do centro da capital, mudam-se para a Rua das Trinas. No mesmo ano o Dr. Sousa Martins avisa Silva Pinto:

- O poeta Cesário Verde está irremediavelmente perdido.

Em 1877 Cesário queixa-se:

- Agora trago sempre no pescoço umas escrófulas que se alastram, que se multiplicam depressa. Não sei se é resultado sifilítico, se o que é.

Em 1882 morre, tuberculoso, Joaquim Tomás, irmão de Cesário. Como dez anos antes morrera Maria Júlia...

(...)
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebates ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas
Com que se despediu de todos e do mundo!
(...)

Pobre da minha geração exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com os sapatos ensebados
E ter riquezas químicas no sangue.
(...)

 

DEIXA-ME DORMIR

Em 1883 Cesário vai a Paris numa tentativa malograda de exportar vinhos portugueses.

Regressa. Sente-se debilitado mas continua a trabalhar na loja e na quinta, ficar ocioso é dar o flanco à doença. Em 1884, em Linda-a-Pastora, ainda tenta exorcizar a morte, esse medonho muro:

(...)
Oh! que brava alegria eu tenho quando
Sou tal-qual como os demais! E, sem talento,
Faço um trabalho técnico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando.
(...)

Em 1886, para fugir à humidade marítima de Linda-a-Pastora e aos consequentes acessos de tosse e hemoptises, vai para Caneças, a dois passos de Lisboa, porém serra, clima seco. Silva Pinto e António Papança visitam-no. Cesário tem apenas 31 anos mas já perdeu as ilusões:

- Curo-me? Sim, talvez. Mas como ficou eu? Um cangalho, um canastrão, um grande cesto roto, entra-me a chuva, entra-me o vento no corpo escangalhado...

Resolve subitamente abandonar Caneças, fugir, fugir... Recolhe-se à casa de um amigo, junto ao Paço do Lumiar, às portas de Lisboa.

No patamar da escada José Anastácio Verde e Silva Pinto encontram-se, abraçam-se, choram.

A 19 de julho, Jorge, o último dos irmãos, pergunta a Cesário:

- Queres alguma coisa?

- Não quero nada. Deixa-me dormir.

São as últimas palavras do poeta.

No ano seguinte Silva Pinto colige os versos e edita O LIVRO DE CESÁRIO VERDE, 37 poemas, cento e muitas páginas, 200 exemplares.

Sem comentários:

Enviar um comentário